Obra inacabada
Era um homem como todos os outros. Olhar calmo, barba feita, vestido humildemente, como todos os outros. Um ar de superioridade intelectual saia de sua face, mas era só um ar, fumaça de uma inverdade.
Vivia sua vida tranquilamente. Mulher, filhos, futebol do final de semana. De tempos em tempos, um churrasquinho com os irmãos. Três, com mãe e pais vivos.
Casa alugada. Televisão, carro, aparelhos eletrônicos e coisas comuns de casas. Servidor público federal, nada de mais, técnico.
Tinha muitos sonhos quando criança! Sonhou ser escritor! Nunca redigiu nada além de ofícios, comunicados e memorandos.
Sonhou ser jogador de futebol! Sempre era o penúltimo a ser escolhido. E continuou. Até parar.
Sonhou ter mais sonhos! Sonhava sempre as mesmas coisas.
Viveu sua vida, até certo ponto, numa mesmice de dar inveja as estátuas.
Café, repartição, família, reuniões, aniversários, filhos formados, enterros dos pais, missão cumprida.
Que missão?
Beijou sua face a nobre vontade não realizada. De ser aquilo que não foi. De realizar alguma coisa de importante, que o mantivesse um pouco mais no mundo.
Aposentou-se. A mulher deu adeus a terra. Os filhos se foram para novos lares. Ficou só.
Leu clássicos, história, romantismo, realismo, modernismo! Queria um emplasto que não fosse romântico, sem muito realismo, mas não tão surreal, que não fosse coberto de água por todos os lados! Aquele que nunca fora criado! A fórmula da eternidade!
Escreveu um artigo sobre a história do serviço público para um jornal sindical. Leram e gostaram! Amigos telefonavam!
- Você tem talento, velhaco!
-Até que daria para um bom escritor! (Risos do fanfarrão...). Ótimo artigo!
Sentiu uma reviravolta em seu mundo! Escreveria um romance! Policial? Não. Talvez sobre a vida de um servidor público!
Sentou. Papéis a sua frente. Sentiu uma felicidade que nunca havia sentido antes! Uma euforia tomou-lhe as ideias! Desejo constante de ficar para a posteridade! Vão ler o meu nome na capa do livro! Procurarão minha biografia! Saberão dos meus grandes feitos na vida!
Que feitos? Que vida?
Levou a mão ao peito. Caiu da cadeira procurando o telefone. Rasgando o solo com suas unhas mal cortadas. Mordendo os lábios. Não chegou a discar nenhum número.
Janela aberta, por onde o vento entrava balançando a cortina. O vento parou, a cortina se fechou para sempre. A luz nunca mais tentou sair, não chegou a sair dali.
E as páginas de um livro, mal escrito e concebido, foram rasgadas com violência, queimadas de súbito e guardadas em uma caixa sem cor, na estante que contém obras que não chegaram a existir.