O RUGIDO DA MONTANHA

I - O fim do mundo começou no dia 05 de novembro, às 15h30m. Começou com dois tremores, que poderiam ser abalos sísmicos circunjacentes ou, já, o rompimento da barragem na sua parte interna. A revolta intestinal do caldeirão de lama que não se continha mais nos limites geográficos traçados pelo homem. Para muitos moradores, que já temiam uma tragédia, por conta de trincas e vazamentos suspeitos naquela montanha de contenção, o aparecimento de uma nova fissura soou como um aviso. E, de fato, poucos minutos depois o dique se rompeu com uma força descomunal, liberando um tsunami de 60 milhões de metros cúbicos de rejeitos que nas próximas horas espalhariam um cenário bíblico de devastação e morte na região.

II - Como o Vesúvio, exceto pelas lavas incandescentes, a Barragem do Fundão reescreveu, em solo mineiro, a história de Pompeia ao engolfar, em poucas horas, o povoado de Bento Rodrigues e adjacências com uma onda gigantesca de água, areia e resíduos de minério de ferro. Arrastando escola, casas, carros, móveis, árvores, animais e pessoas desavisadas ou indefesas que não tiveram tempo de subir a encosta. Quem sobreviveu não salvou nada além da roupa do corpo. Náufragos empoleirados no topo do monte Ararat aguardando, desesperados, a aproximação do helicóptero do Corpo de Bombeiros para levá-los ao porto seguro de um abrigo ou alojamento.

III - Com a chegada do socorro pelo alto, Caronte já podia contabilizar as vítimas, entre mortos e desaparecidos. Dezenas de corpos foram arrastados pelo vagalhão, que sufocou cinco distritos e fez o leito do córrego Gualaxo subir repentinamente cinco metros. E isso era apenas o começo. Na madrugada do dia 06, depois de atravessar uma usina hidrelétrica, o lamaçal alcançou Barra Longa, inundando ruas, avenidas e o campo de futebol. Poucas horas mais tarde atingiu o Rio Doce, considerado o Nilo brasileiro por abranger 230 municípios, entre Minas Gerais e Espírito Santo, cujos moradores, em grande parte, utilizavam seu leito como subsistência. A sopa de rejeitos, agora incrementada com uma mistura de metais diversos – arsênio, mercúrio, cádmio chumbo, zinco, hidróxido de sódio – ali despejada pela atividade ilegal de garimpo, condenou à morte, de imediato, 11 espécies de peixes, além de 12 outras que são endêmicas e só existem naquela bacia hidrográfica.

IV - Começava naquele ponto, longe do epicentro da tragédia, a rota fluvial do vagalhão a caminho do mar, 500 quilômetros à frente. No percurso, aguardando sem dormir a chegada do dilúvio, estavam os habitantes das cidades de Governador Valadares, Ponte Nova, Nova Era, Antônio Dias, Coronel Fabriciano, Timóteo, Ipatinga, Tumiritinga, Resplendor, Galileia, Conselheiro Pena, Aimorés e, já no Espírito Santo, Baixo Guandu, Colatina e Linhares. Uma vigília sinistra à espera do quarto cavaleiro do Apocalipse. Uma catástrofe anunciada pelas trombetas de Jericó.

V - Visto do alto, o lodaçal era uma gosma pestilenta infestando as águas e as margens do rio num avanço incontrolável em direção ao litoral. Por satélite, uma sinuosa mancha escura contaminando o território conquistado. Uma locomotiva rebocando os destroços da serra do espinhaço. Até que, dias depois, visto de perto, o mar vermelho desemboca no oceano com sua carga daninha ao ecossistema Em consequência, praias e uma reserva biológica foram imediatamente interditadas.

VI - Assim, a Barragem do Fundão, encorpada pela sujeira e metais pesados que agregou na sua incontida marcha de 500 quilômetros, agora é um monstro marinho, uma arraia gigante e multiforme que avança, indômita, ao sabor dos ventos, das tempestades e das correntes marítimas. Segundo os ambientalistas, ela tem cem anos para dissolver sua herança nociva nas profundezas abissais do Atlântico. Isso significa que os causadores da tragédia já podem afrouxar a postura circunspecta diante dos holofotes e insistir no discurso de que tudo não passou de uma fatalidade. A responsabilidade agora é de Netuno, o deus dos mares.

VII - Curiosamente, o arrastão durou 40 dias e 40 noites. A vida continua para mim, para o estimado leitor e para muitas pessoas. Milhares, milhões, bilhões de pessoas. Mas, para aquelas inocentes criaturas engolfadas no jorro da montanha – trabalhadores, donas de casa, crianças, idosos, aposentados – e para várias espécies de animais, o mundo acabou nesse lapso, de uma forma brutal, sob o impacto de um segundo dilúvio, que não foi deflagrado pela cólera de Deus, mas pela cobiça dos homens.

VIII - Com esse pensamento, Etelvânio Pasqualino, operário que perdeu dois parentes no desastre, voltou ao local no quadragésimo primeiro dia, acompanhado de uma repórter. Conteve as lágrimas ao se deparar com o cenário pós-apocalíptico, a paisagem lunar que tinha diante dos olhos.

IX - - Hiroshima – respondeu, quando a moça lhe perguntou em que estava pensando. A represa era um bomba de 100 megatons sobre nossas cabeças.

X - Dito isso, observou, intacto, um pedaço da única rua asfaltada do povoado. Uma lasca que resistiu à fúria dos elementos. E, dessa lasca, ainda tímida, germinava uma plantinha descolorida. Um broto de azaleia, talvez. Fez menção de colhê-lo, mas se conteve. Aquele botão – percebeu - era uma resposta da natureza. Era a vida que voltava ao vale das sombras e seria uma profanação arrancá-lo. Aquela flor era a mensageira dos novos tempos.

(Crônica classificada em segundo lugar no III Concurso Internacional de Literatura da ALACIB - 2016)

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Pereirinha
Enviado por Pereirinha em 04/11/2016
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