Astride, a professora

Astride fizera todo o esforço imaginável para não ser chamada de analfabeta política, isto não, isto nunca, logo ela, professora e que passou anos preparando alunos para o vestibular, e até tinha premonições sobre temas para as redações. Esse direito Astride não tinha, ensinou em curso de nível superior, formou letrados e pedagogos. Como então eximir-se da responsabilidade cidadã? Professora Astride foi se decepcionando, mas calava perante os alunos, não tinha também o direito de dizer sobre suas angústias e decepções profissionais. Como fazer isto se ali o sonho era justo ser professor? Desde criança Astride só conhecia o lado bom da vida. De repente observava que o mundo girava de cabeça para baixo. Conhecia assim as voltas que o mundo dá. Entrava ano e saía ano e a vida de professora só piorava, e ela ali, firme, cuidando de manter o pessoal acreditando em Educação. Quando lhe advinham momentos de revolta, queria jogar os livros no ventilador, mas não fez isto, o mais que fez até hoje foi trocar livro de papel por livro online. Continuou nos livros... continuou iludindo, agora já consciente, uma consciência tão dolorida e forte que a fazia sentir-se criminosa. Não se preparou para outras opções, gostava só da palavra. Gosta ainda. Fala das palavras como se fossem divinas. E as palavras também a enganam. As dos políticos em especial. Como eles sabem manipular as palavras! Procurou na mente se em algumas aulas teria ensinado a usar as palavras, distorcendo-as, de forma cínica, envenenando-as. Não se recordava, resolveu, para não sofrer mais, que fizera tudo corretamente. E de onde vieram aqueles monstros que usavam a palavra como fuzis? Como metralhadoras? Usavam não apenas as palavras voando ao vento, mas a caneta fixando-as no papel. Reconheceu alguns alunos em cargos políticos, outros em posições privilegiadas e, enquanto isto, viu a palavra professor se tornar um pejorativo. Não, não é possível, pensava Astride, não teria participação naquele horror, e nem transformara seu aluno morador de bairro periférico naquele monstrengo de paletó e fazendo caras e bocas de majestade. Um aluno passou por ela sem dirigir-lhe um olhar; outro voltou a face para o lado contrário, não, ele não sabia quem era aquela mulher com cara de pobreza, sem uma joia no pescoço, no pulso ou anéis de brilhante. Interessante que as alunas pedagogas continuavam seu discurso de enganação educacional, poxa, que lástima. Astride foi ficando cada vez mais triste, mais pesarosa. Um ex-colega, vizinho e companheiro de alguns eventos sociais virou governador, e o que fez foi ironizar professores e dividir-lhes o salário em parcelas, assim como as lojas o fazem vendendo sapatos, bolsas e outras tralhas. Astride aposentada passou a sentir-se um peixe fora d’água, uma baleia que engoliu uma sacola plástica. Assim mesmo, a professora continuou comparecendo às urnas, votando nulo, tornada analfabeta política, enfim. Veio uma eleição e a candidata, desconhecida, mas era uma mulher. Astride aproveitou para votar, escolheu aquela mulher. E o que aconteceu? É preciso relatar? Não, isto não é um artigo jornalístico, é apenas uma crônica e Astride não precisa mais do ENEM com suas propostas de redações amarradas, tão cerceadoras da criatividade quanto as palavras dos discursos políticos. Astride não pode mais ser acusada de analfabeta política, mas sim, pode ser acusada de continuar tentando arredondar mentes. Neste momento, Astride, carta fora do baralho, não dispõe de espaço para desembotar as jovens mentes dentro das salas de aula, formatadas em recipientes de concreto, mortas para sempre.