Conversas da última hora

A princípio pareceu-lhe estar num sonho, nesses em que você não consegue nem falar, nem gritar, nem se mexer. Estava literalmente paralisado, não podia abrir os olhos, mas não sentia medo. Ouvia à sua volta conversas estranhas, em voz baixa, cujo sentido ainda não compreendia. Apurou os ouvidos.

_ Que coisa, hein? Quando se deu o fato?

_ Minha filha, por essa ninguém esperava, foi tudo de supetão. Nesse mundo de Deus a gente não deve espantar-se com mais nada, não é mesmo?

_Foi durante a noite?

_Foi sim. Lá pela meia-noite. O filho dele disse que foi depois da derrota do Corinthians.

_ É o que eu digo. Nenhum time de futebol vale isso. Olha no que dá esse fanatismo de torcedor!

_ Nada! A verdade é que hoje em dia as pessoas não se cuidam. Deixam a vida correr, ignoram os avisos, depois quem sofre é a família.

Um pouco mais distante, ouvia fragmentos do diálogo entre dois homens.

_ Meu, acabei não indo trabalhar, não poderia deixar de vir. Amigos são para essas horas. Fiel é isso. Junto nas vitórias e nas derrotas. Na vida e na morte.

_ É isso aí, mano. Foi triste o acontecido. Agora é encarar a situação. Você trouxe a bandeira? A bandeira tem que ir junto, o cara merece. É uma homenagem justa, o pessoal vai aprovar.

Essas vozes não lhes eram estranhas. A mais rouca, do Paulão, a outra era do Zeca Pitbul, companheiros de trampo, de birita e de futebol. Que diabos estavam fazendo ali? Seria um trote? Desse pessoal podia esperar tudo.

Um cheiro acre sobressaía aos odores do ambiente. Uma mistura de cera queimada com flores vagabundas. Sentia um sufocamento. Seria o que ele estava pensando? Não! Não é possível! Ouviu um choro baixinho, alguns fungados e o ruído de narizes assoados. Alguém murmurava palavras graves de consolo.

De repente, a voz estridente de Dona Marta, sua vizinha carola. Sentiu um arrepio.

_Gente, vamos fazer uma oração. Daqui a pouco o pastor vai chegar.

Puxou um Pai Nosso com todo vigor, acompanhada de um coro de vozes. “Que estais no céu...que estais no céu....que estais no céu...” Aquelas palavras ressoaram na sua cabeça e despertaram certo medo. Estavam indo longe demais. Caramba, aquilo era um velório! Esse pessoal tá louco. Até o pastor vai participar dessa brincadeira? Que maneira doida de comemorar a classificação do timão! Peraí, nós ganhamos a partida? Nãooooo! Não ganhamos, agora se lembrava. Estávamos fora da final. Que diabos esse pessoal tá zoando? Não tem graça nenhuma. Vão tripudiar sobre a cova da mãe deles. Cova??? Que brincadeira de mau gosto, cara! Estavam simulando seu enterro. Pára com isso! Era hora de interromper aquela palhaçada. Gritou.

_Agora chega pessoal. Valeu, mas já passou dos limites. Vamos parar com isso. Meter oração e pastor no meio já é exagero. Essa você me paga Paulão!

Estranho! Não ouviu seu próprio grito. Nem ele nem ninguém. Sua voz ficou congelada na garganta. Tentou abrir os olhos. Não conseguia nem mover as pálpebras. Tentou levantar-se. Nada. Não podia mexer um músculo sequer. Estava sem ação. Será que lhe deram algum tipo de calmante? Sua mulher não percebia que isso era perigoso? Ela odiava futebol, como podia participar daquele jogo besta?

Ouviu a voz solene do pastor.

_Coragem, irmãos! Os caminhos de Deus são imperscrutáveis. O Carlão agora faz parte de outra torcida. É do time de Javé. Sua alma já repousa no seio do Pai, onde não há mais derrotas, nem dores, só louvores. Glória! Aleluia!

Carlão ouvia aquela litania aterrorizado. Já tinha certeza que uma desgraça estava a caminho. Começou a suar frio. Aí ouviu um grito agudo de pavor.

_Gente, o morto tá suando!!! Silêncio geral! Um burburinho percorreu a sala. O Pastor botou ordem no ambiente.

_Calma, irmãos! Não se preocupem! Isso não é nada. São reações naturais do organismo. Vocês sabem que as unhas dos cadáveres continuam a crescer por certo tempo? Há muito a medicina já esclareceu esses fenômenos. Não vamos assustar a família. Continuemos nossas orações....

_ Carlão percebeu que estava perdido. Achavam que tinha morrido. Aí teve certeza da tragédia, quando fecharam a tampa do caixão e ouviu um último grito.

_Tragam a bandeira do Curintia!!!!!

Domingos Sávio ferreira
Enviado por Domingos Sávio ferreira em 30/10/2016
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