Meu mais recente melhor amigo da vida inteira

"Do meu pai só esperei gestos pequenos".

Quando ouvi da boca de Roberto essas palavras, já soube imediatamente que elas não caberiam por muito tempo dentro de mim. Teria de devolvê-las, de alguma forma, ao universo.

Nossa conversa durou pouco mais de duas horas e estabelecemos, nesse tempo, um contrato não-declarado de cumplicidade. Ele podia me contar qualquer coisa. Fazer a confissão que desejasse. Confiar o mais íntimo segredo. Eu era uma página em branco. Ele, um belo poema se escrevendo em minhas linhas.

O ambiente era propício. Ambos tínhamos sido impedidos de seguir com quem fomos acompanhar em perícia médica. No caso dele, a esposa. No meu, minha irmã. Então aguardávamos sentados do lado de fora daquela repartição pública da saúde. Não me lembro quem começou o assunto e o início não poderia ser mais previsível: o lugar de onde vínhamos, o clima, depois o trânsito de São Paulo e por último a indignação por estarmos impedidos de acompanhar nossos pares até o consultório médico.

"Então você vive em Sorocaba? Tenho uma tia querida que também mora por lá. Qual é o seu bairro?", "Ah, é verdade, esse tempo é maluco. A gente sai de casa, de manhãzinha, todo agasalhado. E tem que ir tirando as blusas depois... Sim, tem razão, às vezes temos todas as estações do ano num único dia!", "Puxa, então você também se perdeu?... Sim, concordo. As placas são confusas. Isso quando há placas!", "Que absurdo, não? Como podem nos impedir de entrar, se somos acompanhantes!?"

Não consigo precisar como esse nível de conversa de fila do pão evoluiu para a declaração que me impactou. A verdade é que a partir daí o relógio tornou-se meu inimigo. Secretamente, desejei que tanto a esposa dele quanto a minha irmã demorassem algum tempo na espera pelo atendimento médico. Se não muito, pelo menos o suficiente que me permitisse ouvir daquele senhor com voz agradável, sorriso largo e disposição para dividir comigo, uma completa desconhecida, a história de suas dores e seus amores.

Contou rapidamente das dores. De como perdeu, ainda criança, sua mãe. De como se agarrava às lembranças que mantêm essa mãe tão viva dentro de si. Enveredou a conversa para o quão interessante ele considerava a figura feminina em toda sua essência e complexidade. Falou do amor gigante pela esposa e filhas. Sobre o pai, limitou-se a confessar que foi o ator mais importante para sua formação humana. A lembrança desse pai representava o perdão que aprendeu a conceder para que pudesse seguir em frente. Mostrou sem cerimônia suas cicatrizes, heranças das consequências de muitas perdas. Explicou o que significavam, no dicionário dele, as palavras abandono, violência, fome, medo e solidão. Falou da (sobre)vida nas ruas.

Então falou de flores.

Eu acabara de conhecer um sobrevivente. Estava profundamente tocada pela beleza da história de vida desse homem que se agarrou à poesia para conseguir, apesar da maré adversa, nadar para o lado da salvação.

Lá pro meio da conversa, quando meu mais novo amigo falava com orgulho da publicação de seu último livro, pedi uma interrupção para anotar título e nome do autor. Foi então que rimos de nós mesmos. Até aquele momento ainda não tínhamos nos apresentado. O nome do poeta me soa agradável - Roberto Flores. "Muito legal você adotar o Flores, te representa bem essa mistura de força e delicadeza...", observei. Ele explica: "Nao, não adotei. Nasci Flores."

A esposa foi liberada antes da minha irmã. Meu recente amigo, que provavelmente não mais voltarei a ver, despede-se e segue seu destino. Fico processando sua história de vida e me sinto grata por tê-lo conhecido.

Chego em casa apaixonada pela vida. Meu marido pergunta como foi tudo e respondo que conheci uma linda pessoa, que ganhei um novo amigo e que a poesia era libertadora. Ele balança a cabeça, sorrindo: "Mais um!?"

Respondo que "sim, mais um. Chama-se Roberto Flores e é poeta. Você não imagina a história dele, é incrível..." O cônjuge me interrompe. "Quando é que você vai parar de importunar a tranquilidade de gente desconhecida? Não acredito que invadiu a intimidade deste pobre homem!".

A censura não me abala. Ele sabe que quando o assunto são flores, sou toda ouvidos para a primavera.

Keila Maldonado
Enviado por Keila Maldonado em 29/10/2016
Código do texto: T5806972
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