Santidade em pêlos

Os símbolos religiosos da casa de vovó Inhana - que viveu sempre rodeada de quatro filhas solteironas e de um varão - estavam sempre ao alcance de nossa vista. Expunham-se na sala de visitas, no oratório e nos aposentos. Nomeá-los todos, seria enfadonho, e haveria o risco de alguma exclusão involuntária.

Mas os mais ostensivos eram quadros emoldurados da Sagrada Família, do Anjo da Guarda, com uma criancinha à frente, e imagens representativas de São Jorge a cavalo, sempre pronto para liquidar o Dragão da maldade e uns crucifixos, entre os quais se destacava um mais longo, de madeira com a imagem metalizada do Cristo.

O castiçal, assim como o missal de Tibebé, e o livro Adoremus, os terços que cada um dos residentes possuía, passavam também por peças sacras. E nesse rol, a cada ano, entrava também a Folhinha-Calendário do Coração de Jesus, que se renovava anualmente. E havia ainda a folhagem ressequida, pendurada atrás da porta da cozinha. Ela era benta no Domingo de Ramos, e um remédio infalível contra o perigo das tempestades e trovoadas, quando levada à chama do fogão de lenha. E, naturalmente, tinha que ser acompanhada do Ofício à Imaculada Conceição, a reza em versos mais longa que chegamos a conhecer.

O que, contudo, inspirava nossa maior curiosidade, e reverencial temor nem era efígie do Padre Libério que, na nossa meninice já era considerado homem virtuoso e candidato sério à santidade, mas sim a gravura não-emoldurada que ornava - do lado interno - uma das portas do guarda-roupa de Tibebé, quiçá em razão de sua mais espevitada fé entre toda a irmandade.

Pois é, essa peça misteriosa era uma gravura que se dizia, e se temia, de Santo Onofre. Esse Santo, que não era invocado em quaisquer das orações habituais, era-nos estranho, por demais:

sua nudez cobria-se tão só com os pêlos do corpo que, apesar de uma acentuada calva viril, naturalmente se estendiam pela partes pudibundas, de molde a não deixar nada que sugerisse descuido ou obscenidade. E, curiosamente, as coxas, numa aparência de bem recente depilação, eram lisinhas e alvas, temperando a masculinidade da abundância de pêlos.

Tibebé tinha certa relutância em nos exibir tal figura, mas cansada de nossa insistência, fazia-o sempre com a advertência severa de que não se podia escarnecer de figuras santificadas. E à vista, nos refreávamos dalgum rubor ou mesmo riso. Porém, invariavelmente o associávamos a um outro Onofre, esse em carne e osso, que era o dono do bordel da cidade, sempre execrado pelo vigário da cidade pela exploração do lenocínio. O que os diferia, nada obstante, era a santidade de um, e a vulgaridade do outro, a quem até apodavam de Onofre Tatu.

E se nossos ancestrais se foram, um a um, ao longo das décadas de nosso convívio, ficaram os símbolos, os mementos. Inclusive o peludo Onofre que, malgrado a nudez, porta uma bolsa de couro tiracolo, mas o olhar sempre benigno. Seu xará, no entanto, também nos deixou, mesmo sem pranto.

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 27/10/2016
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