TIC-TAC É O SOTAQUE DO ERMO ENFERMO

Hoje é um dia que o tempo parou e o relógio seguiu. Certamente e tenho certeza disso, a terra parou de girar em torno do sol mas o ponteiro continua TIC-TAC TIC-TAC e apenas o ponteiro é capaz de dar voltas em torno de algo, a terra parou de girar e o vento cessou e a chuva estiou e a maré acabou e a onda abrandou e o barulho ressoou. A base da terra está corroída como carne moída, com o dia cinza e a noite alaranjada e a garoa não para e o dia não passa e as horas voam mas o dia não acaba. Enquanto parado esperando o trem, a senhora da limpeza passa empurrando seu carrinho e tão devagar e tão solícita à dar passagem que nesse momento e movimeto ela não existe pois ninguem realmente a vê, acredito que empurrava numa velocidade tal qual o dia e querendo que o tempo voasse para não estar ali ou apenas que estivesse em qualquer lugar do mundo que não fosse empurrando seu carrinho lentamente como se a vida fosse um marasmo sem fim, e de fato... Empurrou e passou e não existe e fui embora exatamente como ela, sem existir ou sem presencialidade concreta apesar de materializada e agora volto exatamente do mesmo modo e o dia da mesma cor e intensidade, sem horas ou sem vento ou sem chuva ou sem onda ou sem sol e sem lua, nesse momento a mulher passa a existir pois eu a olhei ir e vir.

Chegar em casa enfim: chegar em casa enfim é o fim sempre igual: esperamos ludica/lucidamente chegar e encontrar algo novo em todos os lugares mas a presencialidade da realidade abjeta mostra sua faceta mais severa quando tudo se torna igual tal qual o esperado do desespero exasperado, nada de batalhas dionisíacas onde o vinho é a arma contra a fome da alma, nada de cânticos gregorianos onde a voz soa do ouvido como zumbido ufânico, apenas tenho o descanso do corpo em nó e balanço. A voz da letra é singela e anêmica força endêmica da vida idêntica ao de sempre igual recíproco banal tal qual qualquer letra pueril e vil no asfalto escrita e descrita de assalto no chão da rua e crua feito sem jeito e laço sem aço no peito ou leito da mão no chão que descreve quem escreve e deleita em coro seu choro de exagero agoro e desespero.

TIC-TAC é o sotaque do ermo enfermo do dia que retorna e se torna ampulheta eternamente entremente que transforma e transtorna a gente em água esparramada e agitada e quente sob a cama pensando nalguém que ama e ao amor nos esparrama nos tolhe nos engole e uma poesia do dia nos clama e declama nos tinge e aflige nos empurra e derruba.