Salário Mínimo.

Eles nasceram um para o outro. Um casal incrível. Só não eram perfeitos porque, como dizia a minha velha avó africana:

-"Não existe perfeito sem defeito.”

Eram simpáticos, alegres, sorridentes, pareciam celebrar constantemente o prazer de estarem juntos. Viviam em um pequeno conjugado na Rua do Riachuelo e caminhavam pela Rua do Passeio Público todo fim de tarde quando o sol, não querendo ir embora, se escondia entre birras e muxoxos por detrás dos Arcos da Lapa, reclamando que a lua testemunhava muito mais a hilária carioquice desse nosso povo boêmio. Eu, que os conhecia desde os antigos carnavais, jamais testemunhei qualquer rusga entre os dois. Mas, como dizia a minha velha avó oriunda das entranhas do continente negro:

-"Se quer conhecer o tal, come com ele um quilo de sal!”

E como de perto ninguém é normal, o casal também possuía sua triste anomalia natural. Por trás daquela aparência inofensiva de anjos, se escondiam os mais ardilosos especialistas na arte de criar alcunhas e disseminar boatos. O alvo era quase sempre os nossos amigos compositores. O casal maquinava histórias e apelidos mirabolantes, provocando sérios embaraços às vidas de suas malfadadas vítimas. Espalhavam rumores sobre doenças, morte e até ressurreição. Inventavam histórias de compositores que viravam Lobisomem, ou eram abduzidos por óvnis, engolidos por pitbull, que quebravam meio contingente da guarda municipal ao receber o caboclo da Madame Satã ou um simples encosto de Bruce Lee. Uns eram vistos rasgando dinheiro, bebendo ácido, azeite de dendê, querosene, coca-cola fervendo, engolindo vidro, cuspindo prego, fogo, marimbondo e outros afins. E o pior é que as invenções do ARDILOSO casal iam parar lá nas rodas de pilherias e pandenguices dos camelôs do final da Rua do Passeio Público, já próximo a entrada da Cinelândia em versões inimagináveis.

No célebre cabedal de boatarias originadas pelo simpático, porém ordinário casal, estava à história do compositor Milton Rolão. Eles diziam que Rolão era o amante secreto de uma freira e que a religiosa ao abandoná-lo, o fez pular da única torre da igreja da Lapa bradando o nome do seu ingrato amor por todo esse fervoroso recanto de intrigas e mexericos no momento de sua queda. Quando na verdade Milton, que além de possuir um sobrenome horrível e fazer um papel igualmente medonho, andava constantemente embriagado e foi resgatado e convertido pela pobre freira, que lhe arrumou um emprego de zelador da tal igreja. Só que o desajuizado voltou a se embriagar e contrariando a ordem da apreensiva irmã, subiu para tentar reconstruir uma das torres que há muitos anos fora arrancadas por um tiro de canhão de Floriano e acabou despencando lá de cima feito um cacho de banana podre, gritando:

-Socorro!!!

Por coincidência Socorro também era o nome da mal falada irmã de caridade que conseguiu ampará-lo com sucesso e foi apelidada pelo malicioso casal de “irmã pega Rolão.”

Fato semelhante ocorreu com a pobre compositora Dilmete Aparecida. Pelo simples fato de ter criado uma marcha exaltando as virtudes das forças armadas brasileiras, foi apelidada de “Dilmete entorta baioneta.” Em virtude de SUA alcunha terminar em “eta”, é desaconselhável repetir aqui o que os camelôs pândegos da entrada da Cinelândia gritavam toda vez que a plácida dona de casa caminhava pela rua do Passeio Público.

Certo dia vi a fofoqueira correndo sozinha entre soluços amplificados, com as roupas e cabelos em um desalinho fora do comum. Não demorou muito para que seu companheiro de criações surreais surgisse logo em seguida, vermelho e amarrotado feito um tomate rejeitado na xepa. Tremendo igual a vira-lata com cinomose, sofrendo mais que banguela que inventa de comer amendoim torrado. Empunhava uma pequenina pistola “mouse” tão enferrujada, que era capaz de matar mais de tétano que de tiros. Estava metido num camisolão branco de dormir, mais parecendo um jihadista do Talibã querendo atropelar sua torre gêmea pela proa. O farto arsenal de munição que portava, embora de pequeníssimo calibre, era suficiente para fazer com que sua companheira se transformasse numa enorme tela de cercar galinheiro. Larguei imediatamente as minhas partituras e corri ao seu encontro, interceptando-o já na entrada da rua do Riachuelo.

– Calma parceiro! Gritei abraçando-o como se estivesse segurando literalmente um touro pelos chifres. Meu desconsolado amigo brecou.

– O que está havendo? -Indaguei já desconfiado dos fatos.

O pobre desgraçado me abraçou desmanchando-se em lágrimas. Havia encontrado sua parceira nua em pelos, ou melhor, sendo bizarramente depilada pelo chicote de um magricela aprendiz de domador de um circo da Praça onze. Ela estava dentro da jaula do leão, já quase sem couro, urrando feito uma porca doida no cio. Tentei tirar de sua cabeça a ideia fixa de dar cabo a vida desavergonhada de sua companheira de amor, de música, de invenções de histórias, de apelidos memoráveis. Perdi muito tempo tentando amansar aquela fera indomável e quanto mais eu argumentava, mais ele bufava. Até que me veio a mais infeliz de todas as ideias já concebidas por essa minha mente em perfeito gozo de seu desvario. Resolvi, como um último recurso de convencimento, aplicar-lhe um golpe baixo, proibido, insensato:

– Isso também já aconteceu comigo!- Disse eu olhando para o chão, envergonhado por ter que mentir.

Meu amigo cheio de galhos na cabeça, calou-se e pôs-se a me olhar fixamente.

– Um dia também flagrei minha companheira com um homem de circo. Elas não os resistem, os anões são os mais perigosos!

Os olhos do meu amigo reluziram mais intensamente do que sua frondosa testa ramificada.

– E ele era um anão, escada de um palhaço sem graça, de um circo mambembe já quase indo a falência. Nas horas vagas, o conquistador barato se virava como auxiliar de papai Noel numa pequena loja de artigos natalinos aqui da Lapa. Flagrei minha amada companheira em pleno ato de obscenidade, dentro do trenó, sob os olhos escandalizados das pobres renas, das miniaturas de gnomos e todo o presépio. Estava ela entregue aos minúsculos braços do meu arqui-rival, exaltando suas virtudes maiores que as minhas. Na hora, também pensei em esganá-la. Mas não valia a pena acabar com uma vida por um motivo literalmente tão pequeno.

Enquanto meu amigo me olhava fixamente, boquiaberto por confiar-lhe tão escabrosa história, busquei em minha memória afetiva algo que me fizesse chorar copiosamente. Lembrei-me de minha doce avó africana, com sua sabedoria milenar:

“-Quem com o estudo não se ajeita, por si se enjeita!”

Eu, cheio de empolgação, ficava pau da vida com a falação da minha velha avó. Queria era vadear pelas rodas de samba e serestas do Rio de Janeiro, tocando meus instrumentos. Agora eu estava ali, sofrendo tal constrangimento em plena via pública. Chorei. Chorei muito. Meu companheiro, que já havia se acalmado e guardado a pequena “mouse” enferrujada dentro da ceroula samba-canção, abraçou-me agradecido e emocionado. No entanto percebi que minha confissão solidária produziu-lhe uma ponta sarcástica de alegria, um sorriso que lhe escapava pelos lábios feito gotas de veneno. Mas respirei aliviado ao vê-lo desaparecendo todo faceiro, pulando feito um alce em direção ao pequeno conjugado da Rua do Riachuelo. Neste dia nem trabalhei mais, fui para casa tratar do meu galo que também andava desconfiado das atitudes da sua mulher galinha.

No dia seguinte, andando pelo rua do Passeio Público, escuto, entre estrondosas gargalhadas, a pilhéria dos camelôs pândegos lá da entrada da Cinelândia:

– Oh negão! Cuidado com o anão!

Tentei me segurar, ignorar, não responder, àqueles risos de deboche, aquela algazarra grosseira. Mas não me contive. Resolvi então me redimir, prestando uma justa homenagem à minha avó africana, responsável por me passar tantos ensinamentos sobre a importância da auto-estima e do amor próprio. Zuni meu material musical para bem longe, desvencilhei-me rapidamente de minhas roupas, rememorando o tempo em que meus ancestrais travavam ferrenhas batalhas totalmente nus. Ergui-me garbosamente feito um poderoso cetro do Daomé e gritei a plenos pulmões:

– Tão vendo a estética? É herança genética!

A turba se dispersou pra lá de humilhada maldizendo o casal de alcoviteiros. Agora quando eu passo pela Rua do Passeio Público e chego na entrada da Cinelândia, os camelôs pândegos correm mais de mim que dos rapas da Guarda Municipal. Respeito é bom e eu gosto!

"Lá do céu vovó ri, agora toda orgulhosa de seu netinho aqui."

Dudu Fagundes O Maestro Das Ruas
Enviado por Dudu Fagundes O Maestro Das Ruas em 26/10/2016
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