Ferreirinha.

Quando vi o Ferreirinha em carne e osso, ou melhor, mais osso do que carne, fiquei apavorado. Há meses corria um boato de que ele, totalmente embriagado, fora engolido por um jacaré durante uma pescaria no pantanal mato-grossense.

Ferreirinha era um brilhante músico, que já viajara o mundo todo nas asas de sua arte. Ganhou rios de dinheiro. Mas infelizmente, o vício da bebida e do consumismo lhe consumira tudo o que a sua maravilhosa música lhe dera. Meteu-se em dívidas faraônicas, passando a dever a todo mundo que conhecia. Foi quando resolveu interna-se numa clínica de recuperação, onde conseguiu livrar-se totalmente dos vícios do álcool e do consumismo.

Minha alegria ao revê-lo foi tão grande que nem lembrei do seu passado triste de embriagues, nem da grana que o coitado me devia. Queria era tocá-lo, abraçá-lo, ouvi-lo, conversar com Ferreirinha. Sem pestanejar, liguei para todos os nossos amigos e anunciei-lhes as boas novas. Em pouquíssimo tempo a Rua do Passeio Público estava repleta de compositores, músicos, empresários, cantores, produtores, escritores, poetas, pintores, dançarinos, escultores, artistas plásticos e circenses. Todos vieram comprovar pessoalmente o ressurgimento do até então saudoso Ferreirinha. Uns desmaiaram ao vê-lo saracoteando ileso, pra baixo e pra cima. Outros não tiveram coragem de chegar perto do ex-defunto. Alguns mais afoitos, correram apavorados ao verem aquele que recém chegara da cidade do pé junto.

Para que a nossa reunião não ficasse apenas em torno da ex-morte de Ferreirinha, passei o chapéu, ou melhor, o estojo do meu violão, sugerindo uma vaquinha gorda para a realização de um mega-churrasco em praça pública em comemoração a ressurreição de Ferreirinha. Fui pessoalmente ao mercadinho da Praça Tiradentes, acompanhado de uns trinta e tantos voluntários comprar os comes e bebes da big festa do nosso amigo vindo do além. Pegamos um ônibus na Rua do Passeio Público e descemos na porta do Piranhinha, apelido gentilmente dado ao pequeno mercado que fica no centro do baixo meretrício na Praça Tiradentes. Enchemos vinte e sete carrinhos de compras com dezoito sacos de carvão, vinte quilos de alcatra, dezenove quilos de linguiça toscana, dezesseis quilos de lombinho de porco, treze quilos de queijo coalho, oito quilos de sal grosso, vinte latas de pasta de alho, cinqüenta bisnagas e quarenta caixas de refrigerantes. Enfrentamos a fila monstruosa do único caixa existente no Piranhinha e depois de duas longas horas de transito engarrafado, chegamos à Rua do Passeio Público nesse dia sobrenatural. Encontramos uma enorme confusão generalizada. Artistas gritando, se engalfinhando, rolando pelo chão. Quatro guarnições da PM, cinco da Policia Civil, seis do Corpo de Bombeiros e sete da Guarda Municipal tentavam em vão acalmar os ânimos eufóricos da nossa multidão de amigos artistas. É que depois de passados os primeiros instantes de alegria e emoção do reencontro com Ferreirinha, vieram à tona as lembranças de suas dívidas. Como viver de arte nesse País é assinar atestado de pobreza, Ferreirinha foi unanimemente escolhido para pagar o pato, ao menos a parte do pato que ele próprio devia.

Exprimi-me entre a multidão, que amassou o queijo coalho, estourou o saco da alcatra, esmagou as latas de pasta de alho, quebrou as garrafas de refrigerantes, fez patê do lombinho de porco, pisoteou as bisnagas, rasgou os sacos de carvão, derramou os pacotes de sal grosso e se embolou na infinita tira de linguiça toscana. Só depois de muito custo cheguei ao epicentro do tumulto: o pobre do Ferreirinha dentro de um camburão, todo ralado, algemado e desiludido com o mundo dos vivos. Aproximei-me, enquanto o policial que lhe dava os últimos pescotapas, cocorotes e beliscões ligava o motor da viatura e acionava sua sirene:

- O que houve Ferreirinha? - Perguntei assustado.

Só deu tempo do coitado gritar enquanto a viatura já se dirigia para o pau-de-arara da Polinter no Cais do Porto:

- É maestro Fagundes... Para se ter amigos igual iguais aos dessa ralé, é muito melhor mesmo ser engolido por um jacaré...

- Pobre Ferreirinha, mal voltou do Ló, foi viver no xilindró.

Dudu Fagundes O Maestro Das Ruas
Enviado por Dudu Fagundes O Maestro Das Ruas em 26/10/2016
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