Anônima.

Ainda era bonita apesar das rugas provocadas pelo vento do tempo a soprar sobre seu rosto. Me encontrava todo fim de tarde na rua do Passeio Público, em seu vestido longo de seda, enrolada em um cachecol de lã, com leque e guarda-sol. Cumprimentava-me muito educadamente como se fosse a primeira vez que me via. Em seus áureos tempos de juventude, fora musa inspiradora de um poeta. Trazia consigo uns velhos manuscritos amarelados pelo tempo, versos com os quais seu poeta lhe presenteava. Material inédito, qual o mundo jamais tomou conhecimento. Falava-me de sua infância num luxuoso casarão em Vila Isabel. Seu pai fora um dos maiores investidores da capital da república, chegando a empregar milhares de funcionários em seus teares. Falava-me de sua mãe, de sua árvore genealógica de sangue azul, de uma irmã que se casou com um Duque Inglês e de outra que morrera vítima da peste ruim, termo com o qual ainda tratava a tuberculose. Contava-me de como recusou um casamento promissor com um rico industrial, para viver a sua paixão paupérrima, motivo pelo qual fora banida de sua família como a peste ruim. Seus olhos brilhavam quando lembrava de sua paixão proibida por seu poeta boêmio, de como foram felizes juntos, de quanto amor virou canção e quanta canção inspirou noites e mais noites de amor sem fim.

Certa noite fora acordada por vizinhos que o viram caído, embriagado numa sarjeta imunda. Era um farrapo de gente jogado às traças e à lama das ruas. Ergueu-o com todo amor e carinho. Levou-o para casa, deu-lhe banho, trocou-lhe as roupas, curou-lhe o porre, enquanto ele compunha um samba ainda sobre os efeitos da Boêmia e do Parati. Samba este gravado na voz de uma certa Araci. Várias vezes tentou interná-lo em clinicas de recuperação, mas ele sempre fugia e vinha deitar-se como um menino desprotegido no canto de sua cama.

Num determinado momento, seu poeta foi acometido por uma terrível febre, falta de apetite, seguida de uma tosse seca e incessante. Ela conhecia bem aqueles sintomas, eram os mesmos da peste ruim que vitimara a sua rica irmã caçula. Fez tudo o que estava ao seu alcance, mas infelizmente a peste ruim mais uma vez vencia. Seu grande amor partiu numa noite silenciosa, sem luar, sem violão para um lugar onde a alegria, as canções e as poesias são eternas.

Ela respirou profundamente. Ajudei-a a levantar como de costume. Dessa vez despediu-se sem dizer palavras. Foi desaparecendo lentamente na direção ao bairro da Glória para nunca mais voltar. Olhei ao redor e percebi um envelope de carta anônima endereçada a mim. Li emocionado o pequeno bilhete de rabiscos moribundos, amarelado pelo tempo, com o qual seu poeta e grande amor um dia se despediu:

“Do seu pierrô apaixonado,

seu amado menestrel.

Á você eterna Rosa.

Do seu eterno Noel.”

Dudu Fagundes O Maestro Das Ruas
Enviado por Dudu Fagundes O Maestro Das Ruas em 26/10/2016
Reeditado em 05/11/2016
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