Reriutaba.

Ele chegou sorridente, esbanjando uma alegria que não era comum para uma segunda-feira chuvosa e engarrafada, onde o frio e o cinza da manhã carioca lembravam o inverno cor de chumbo da velha União Soviética.

– Bom dia maestro! Que prazer falar com o senhor!

A voz era empolgante, carregada de mil venturas e desventuras vividas por aquela criança já na terceira idade.

– Bom dia companheiro! Respondi sofregamente com uma voz ressacada, carregada pelo peso de minha pobre juventude já desvigorada.

– Vim aqui fazer a partitura para registro de uma canção em homenagem a minha terra natal. Chama-se “Reriutaba." Fica lá no finzinho do Ceará. Faz cinqüenta anos que eu sai de lá e nunca mais consegui voltar. Agora meus filhos e meus netos, todos nascidos aqui na Guanabara, se uniram e me presentearam com as passagens de ida e de volta e mais uns trocadinhos pra eu rever a minha Reriutaba querida.

Seus olhos marejaram de emoção ao falar do lugar onde nascera. O entusiasmo estampado entre as rugas do seu velho rosto remoçava-o, trazia de volta o tão austero vigor que um dia o encorajara a deixar a sua querida, porém seca Reriutaba para se aventurar pelos labirintos inóspitos do Rio de Janeiro, ou melhor, do estado da Guanabara, como ele ainda chamava a antiga capital da república.

Regida pelo seu canto, minha caneta esferográfica deslizava rapidamente pelas linhas e espaços da pauta musical, despejando dezenas de colcheias, pausas, ligaduras e semibreves. Ao fim de sua ária, estava pronta mais uma partitura para registro. E embora eu tivesse notado as desconexões da letra e melodia, sorri elogiando seu trabalho de composição. Não pela qualidade de sua música, mas por ser a primeira e certamente a última, daquele ajudante de pedreiro aposentado, acorcundado por toneladas de sacos de cimento, pedra, ferro e areia que carregara ao longo de sua vida na construção da sua dura história de concreto.

Aquele homem partiu confiante. Viajou três dias e três noites por uma estrada de penhascos, curvas e buracos. Por subidas e descidas em despenhadeiros perigosos a bordo de um ônibus extremamente desconfortável, mas que em sua visão era uma máquina milagrosa capaz de fazê-lo voltar velozmente no tempo. Breve sentiria o cheiro suave de sua terra natalícia, reveria velhos amigos de infância e adolescência, brincaria no açude da várzea do velho rio Acaraú feito um curumim da antiga tribo Reriús. Correria como o pé de vento que sopra da Chapada da Ibiapaba até o Alto do Acara. Beberia água em concha. Pescaria Corvina, Dourado, Lambari, Muçum, Pintado com vara e anzol. Comeria fruta doce e madura no pé. Pisaria com os pés descalços na lama negra do manguezal. Cantaria na pracinha da cidade, acompanhado por um trio de zabumba, triângulo e sanfona sua canção de amor a Reriutaba. No cair da noite, apagaria a lamparina de querosene e repousaria sob os braços tenros e o colo quente de seu amado torrão sonhando que era trapezista, soldado ou quem sabe, cangaceiro do bando de lampião.

Foi sacudido asperamente pelo motorista às sete e dez da manhã. Mesmo sob os efeitos do sono e da exaustão, seus olhos, apesar de já bastante cansados, não o enganariam. Aquela monstruosa megalópole estava longe de ser a sua Reriutaba querida. Os carros trafegavam numa infinita e barulhenta procissão. Um acidente violento congestionava toda a via expressa. Sirenes de ambulância, carros de bombeiros e de policia imploravam insistentemente que lhes dessem passagem em meio ao trânsito insolúvel. Uma mulher gritava desesperadamente enquanto um homem fugia com seus

pertences. Pessoas em farrapos estendiam suas mãos miseráveis implorando por esmola na porta da igreja de Nossa Senhora do Perpetuo Socorro. Caminhou em passos débeis pelas calçadas entupidas de povo estranho. Fumou e tossiu a fumaça da gasolina que tingia de noite a manhã reriutabense. Sufocou-se, enojou-se, vomitou. Procurou em vão entre os arranha-céus uma pessoa, um olhar, uma voz, um lugar, qualquer coisa que lhe fosse familiar... Sua Reriutaba querida jazia distante e esquecida. Era agora uma sombra triste bruxuleando as entranhas de seu passado, assim como toda aquela sua velha gente simples que povoava de alegria as suas antigas vilas sem luz e asfalto. A sua velha mãe Reriutaba não resistira à dor de perder tantos filhos ao longo dos anos. Filhos que trocaram suas tetas secas e seu ventre estéril pelos seios férteis e fartos das mães postiças do sul e sudeste. A velha mãe Reriutaba se definhou em suas saudades, esperando em vão por noticias de seus pequeninos que nunca voltavam. Já velha, cansada, não resistiu às chantagens, pressões e forças da nova Reriutaba, sua homônima. Foi-se, dando lugar a uma Reriutaba impostora, mentirosa, que rapidamente amarrou em suas teias uma nova geração de humanoides caóticos, frios, sem emoções. Robôs regidos pela sistematização perversa da pós modernidade.

Seus olhos se foram chorosos por sua estrada de penhascos, curvas e buracos. Por suas subidas e descidas em despenhadeiros perigosos. Agora ela era seu único consolo. Uma amiga sincera e silenciosa com a qual se encontrara apenas três vezes. A primeira, quando se despediu da mãe Reriutaba que, acenando chorosa, desapareceu, coberta pela poeira do pau-de-arara. A segunda, quando tentou realizar seu sonho de filho pródigo e voltou para reencontrá-la. A terceira, quando descobriu tarde demais que sua Reriutaba querida já não existia.

O Maestro Das Ruas Dudu Fagundes

Dudu Fagundes O Maestro Das Ruas
Enviado por Dudu Fagundes O Maestro Das Ruas em 24/10/2016
Reeditado em 12/02/2017
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