Esforço Estóico

Mesmo com todas as agruras, securas e desventuras, o mundo guarda em si uma maravilha incomensurável, porque é impossível não se surpreender com a força da natureza, nos momentos de júbilo e nos de angústia. Nas secas, o arrebentar inevitável da trama de barro seco, formada no leito do que se chamava de curso d’água, já sem forças e volume para ser chamado de córrego. Nas catástrofes, hecatombes, tremores de terra e de mar. No lixo que entope os rios que cortam as grandes cidades e colhem os excrementos das indústrias, se pode constatar a impossibilidade de se dissolver o plástico, de se fundirem a água, a gosma oleosa, a espuma fétida que flutua por quase toda a superfície. Por baixo, a água, “correndo” lenta e igualmente contaminada. Nos desastres, não há como não se impressionar com a força da gravidade, a inércia, o estudado movimento retilíneo uniforme, as condições normais de temperatura e pressão. O movimento dos amontoados de ferro, polímeros, tecidos e corpos, arremessados de forma indefensável contra obstáculos duros, pela força das máquinas mais avançadas na propulsão. Impossível deter o bólido por absoluta falta de atrito que pudesse conter a força da propulsão - parar ou acelerar? A nave derrapa - e acelera - na camada de inércia do chefe da nação, bem como nas falhas inevitáveis do "equipamento" humano e bate estrondosamente no alvo inopinado. O que mais se vê? Um impacto de magnitude que dispensa explicações quando presenciado. A bolha de tempo se rompe e a bolha de ar se incendeia com a estupidez e a crueldade da reação química: combustível, pressão, velocidade, impacto, ignição, inflamação, deflagração, expansão, deslocamento do mesmo ar. Corpos atirados contra outros obstáculos. Corpos em intensa ebulição. Alguns outros fenômenos também impressionam, considerando que ocorrem no interior da massa cinzenta, contida na caixa do crânio de alguns seres humanos. Outra proporção, mas a mesma magnitude da força natural. Impulsos elétricos de nanossegundos provocando reações químicas e orgânicas variadas, reagindo e interagindo com impressões de memória de complexidade inimaginável e, portanto, indescritível. Alguns daqueles seres detêm e esboçam padrões de comportamento diferenciados dos demais e é mesmo fantástica a capacidade que alguns destes têm de serem mais diferentes que o aceitável – mais do que permite moralmente o direito de ser diferente. O direito de, diferentemente do esperado, agir com a cretinice que for conveniente, com a maldade que for possível ignorar depois de cometida, com a falta de compromisso que se assemelha à ausência de escrúpulos, com a certeza de anonimato, ou, se este não for possível por se tratar de pessoa pública, a impunidade. Isto também é impressionante e nos surpreende. Nem sempre assusta, já que repetitivo. É mesmo maravilhosa a astúcia, a canalhice, a chicana, o acinte da dancinha no plenário, porque todos são infindáveis. São mais fortes que o tempo e a moral. Continuam, crescem, se espalham, fazem escola. São indestrutíveis. São eternos, como quiseram os filósofos, já não bastasse que fossem imortais pela tradição e pela herança entre corpos humanos de parentes. Que outro fenômeno se vê? O álcool enfeita bem o quadro de reações fantásticas. Azulado quando se inflama, produz viagens azuis nas mentes – bolhas de prazer e de inconseqüência, experimentadas nos gabinetes, nos escritórios, como nos pubs, nos botecos, nas esquinas, nos palácios. De novo o espetáculo da ignição do fogo, mas, agora, nas sinapses microscópicas, no sistema nervoso. A máquina humana, com um upgrade de milhões de anos, promove maravilhas e transpõe as expectativas dos mais céticos. É capaz de “maquinar” os mais mirabolantes planos de enriquecimento – embora esbarrem numa ou outra cotação de bovinos –, não importando se há ilicitude, permitindo a ruína de muitos, além dos desastres que serão esquecidos, das patuscadas que não serão lembradas, mesmo quando ditas de um púlpito presidencial. E como uma máquina de metal que descarrega subproduto da queima de seu combustível, cai o homem em desenfreada e fantasmagórica flatulência – locomovendo-se e defecando para o povo, este ignorado. Maravilha. Vamos nos orgulhar, nos esbaldar, aproveitar, porque talvez não haja mesmo qualquer outro lugar do universo com tamanha diversidade de sentimentos, porque só aqui se espera a bolha arrebentar – que o visse Mário Quintana – para dar à luz providências (oremos a alguma força divina para que em outras galáxias haja apenas Ágora e não parlamento); porque a vida que resta e a luta que se luta continuam, companheiros!

Leão da Montanha
Enviado por Leão da Montanha em 26/07/2007
Reeditado em 01/08/2007
Código do texto: T580171
Copyright © 2007. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.