SANDÁLIA (premiada na Uniso)
“Quero uma sandália!” Disse o Homem com voz titubeante à Moça da loja.
A Moça tentou desviar o olhar ao ver os trajes velhos que escondiam o dono da voz. Homem com aparência de morador de rua.
“Quanto custa aquela?” Insistiu a voz saída da boca coberta pela barba e bigode há muito sem corte, mas limpa.
“Catorze e noventa”, respondeu a Moça dirigindo a atenção à Cliente ao lado.
“Posso experimentar?” Apoiando as mãos suadas no balcão de vidro.
“Qual o número?” A Moça vendo-se acuada.
“Acima de quarenta e dois.”
“O senhor calça qual número afinal?” Sentindo possibilidade de escapar.
“Acima de quarenta e dois”, afirmou o Homem, categórico.
“Como assim, acima de quarenta e dois?” Encaminhando a paciência aos estertores.
“A senhorita nunca ouviu falar que pé de pobre não tem tamanho? Até quarenta e um eu raspo o calcanhar no chão, acima disso serve qualquer uma.” Sentiu-se ironia.
Impossível à Moça esconder leve sorriso ante a lógica simplória e feroz. Mudou de atitude. Pegou par na prateleira e ofereceu ao Homem. Antes de soltar as sandálias, arriscou: “O senhor está com os pés limpos, não?”
Sem sentimento de ofensa, reagiu também sorridente, demonstrando saber: “Claro! Tanto quanto os lavados por Jesus antes da Páscoa”, apontando os pés calçados por rotas sandálias de cores diferentes. Uma delas com a tira substituída por uma amarração de barbantes.
Libertas as sandálias e rapidamente calçadas, o Homem sorridente afirmou, à Moça: “Perfeita! Nem machuca o dedão.”
“O senhor vai levar?” Sentimento de alforria ante a situação incômoda, denunciada pelo olhar da Gerente, postada no caixa, censurando a presença do Homem.
“Tem um modelo mais bonito?” Indagou o Homem, vasculhando as prateleiras com olhar de criança namorando presentes de Natal.
A Moça na corda bamba, entre o desespero da perda de tempo e a curiosidade de aonde chegaria a conversa.
“Aquela”. Apontou o dedo de unha comprida em direção a um par mais colorido.
“Aquela é mais cara.” Voz da Moça desanimando.
“Quanto?” Desafiou o Homem.
“Vinte e quatro e noventa.”
“Por que é mais cara? O material é o mesmo”, argumentou demonstrando certa irritação.
“É que esta...” desistindo de explicar, corrigiu... “É o preço dela. Mais cara, mesmo.”
“Faz vinte?” Regateou.
A Gerente decidiu salvar a Moça e interveio bruscamente, mas gentil, dentro do mister de quem sobrevive do comércio: “Meu senhor, posso ajudar?”
“Posso pagar até vinte pela sandália. É o que tenho”, mostrando um pacotinho de moedas, retirado vagarosamente do bolso da bermuda.
Brotou angústia coletiva na loja.
Gerente e Moça entreolharam-se, quase cúmplices em abrirem mão da pequena comissão de uma eventual venda.
“Tudo bem! Tudo bem! Não podem, não podem. Eu esmolo mais um pouco e depois venho comprar”, disse firme o homem como é pertinente a quem decide.
Dirigiu-se à saída, interrompido pela Cliente, que aguardava pacientemente sua vez: “Vamos fazer o seguinte: pago a diferença!” E ofereceu moedas retiradas do porta-níqueis de couro.
Gerente e Moça sorriram, aliviadas do peso que lhes era retirado.
“Não quero favores”, contra atacou o Homem, em tom alto.
Desespero de toneladas caiu.
“Aceite como esmola, então.” Rebateu, placidamente, a Cliente.
Desarmado de argumentos, o Homem submeteu-se. Estendeu as mãos em concha cuidando que nenhuma caísse ao chão. Manifestou um agradecimento com a cabeça, balbuciando algo.
Comungou-se respiração profunda.
Recuperada a dignidade, virou-se para a Moça, colocou um punhado de moedas sobre o balcão e surpreendeu: “Veja-me a de catorze.”...“Quarenta e quatro”... “Não precisa embrulhar”.
Prontamente atendido pela Moça, tirou as rotas dos pés, calçou as novas e finalmente saiu calmamente da loja admirando os pés. Deixou para trás, além das sandálias velhas, três pares de olhos cruzando-se, à busca de entender.
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Crônica premiada com o terceiro lugar no 35.Concurso Literário da Universidade de Sorocaba - out.2016, com mais de 200 trabalhos inscritos.