Parceiragem.

Graças a Deus não tenho inimigo. Mas se o tivesse, jamais desejaria que o pobre infeliz passasse por esse sufoco que dia desses

passei aqui na rua do Passeio Público.

Era uma tarde de sol e eu estava escrevendo partituras musicais para muitos amigos compositores que desejavam registrar suas obras. Quando chegou o Carcará, um dos criminosos mais temidos do Rio de

Janeiro. Gelei quando vi o ferrabrás em carne e osso na minha frente,

mas procurei disfarçar o tremor dos meus lábios, mãos, pernas,

braços e todo o restante do corpo. Os mutos compositores que

estavam ao meu redor foram saindo de fininho, cada um com uma

desculpa mais esfarrapada que a outra, até me deixarem sozinho, tete a tete com o vagabalde.

Caracará veio registrar um samba de embalo que havia composto

naquela mesma tarde, um pouco antes de terminar o tiroteio que estremeceu e apavorou toda a cidade do Rio de Janeiro. O mequetrefe me entregou uma fita K7 com a gravação da sua música e foi tomar uma calibrina num bar da rua das Marrecas enquanto eu preparava a sua partitura para registro. Foi aí que aprendi que não há nada tão ruim que não possa piorar. Foi o margiranha sair, para que chegasse o doutor Leigislau, delegado titular da Delegacia de repreensão a entorpecentes. Um dos homens de ouro da polícia carioca, respeitadíssimo por seu profissionalismo, hombridade, caráter e disposição. Doutor Leigislau passara horas e horas à frente do tal tiroteio que estremecera a cidade do Rio de Janeiro, chefiando a operação que prendera e quase desbaratara uma das maiores quadrilhas de bandidos do Estado. Quase desbaratara porque um dos seus líderes não fora encontrado. E para que você entenda melhor o meu sufoco, esse era nosso personagem inicial, o Caracará, que sob a cadencia do tiroteio, compôs um belo samba de embalo e descera o morro antes do término do arranca rabo para registrar vir registrar sua obra de arte.

Doutor Leigislau me cumprimentou muito educadamente e eu não consegui dizer-lhe palavra alguma. Apenas acenei com meia mão, sem forças para levantar o braço. Doutor Leigislau também veio registrar

um samba de sua autoria, cujas primeira e segunda partes não eram lá grandes coisas, mas o refrão era um achado, tanto de letra quanto de melodia.

Para resolver logo o transtorno, parei de fazer a partitura do

Carcará que se havia ausentado por alguns minutos e rapidamente me pus a escrever a partitura da música do doutor Leigislau. Queria despachá-lo urgentemente a fim de evitar um possível encontro entre a autoridade policial e o famoso meliante. Confesso que nunca havia escrito uma partitura tão rapidamente.

Quando conferia a melodia do doutor Leigislau, solfejando-a em rítmo acelerado, eis que me surge o Carcará. Tudo que eu menos queria aconteceu. Os dois bateram de frente e o pior, na minha frente! A principio pensei em correr daquele iminente tiroteio, me entrincheirar atrás da banca de jornal do Carlão do Passeio, ou criar uma barricada num bueiro eternamente aberto em frente à Faculdade Federal de Música do Rio de Janeiro. Quem sabe mergulhar na caçamba do gari que vinha cantando um pagode do Bezerra da Silva enquanto varria a rua do Passeio Público:

“Eh! compadre a barra tá pesada

tá todo mundo trepado

olha pra cintura da rapaziada...”

Tentei me levantar, mas minhas pernas congeladas de pavor já

não me obedeciam. Sentei novamente, fechei os olhos e pedi aos céus um milagre. Sobrenaturalmente os dois rivais mais famosos da recente literatura policial carioca não se reconheceram. E foi o Carcará quem deu inicio àquela conversa com cheiro de morte:

– Terminou a minha partitura, maestro Fagundes?

– Fa... Falta pouco- Respondi gaguejante como as metralhadoras que

os dois portavam por baixo de seus casacões de couro cru.

Entreguei a partitura doutor Leigislau, afim de vê-lo pelas costas o mais rápido possível. Depois, mais rápido ainda, terminei e entreguei a partitura do Caracará. Mas ao invés dos dois irem logo embora, esperaram para saber a minha opinião sobre suas composições.

– Achei-as ótimas!- Respondi curta e grosseiramente, recolhendo

em altíssima velocidade meu material de trabalho e querendo encerrar ali mesmo aquela perigosíssima conversa.

– Obrigado! Obrigado! - Agradeceram os dois, ensaiando os primeiros passos para irem embora.

Quando pensei que estava livre e a salvo, Carcará pede para ouvir o samba do doutor Leigislau que, por sua vez, confessa

animado, que também gostaria de ouvir a composição do Carcará. Os dois arqui-rivais se assentaram ao meu lado e sem a menor cerimônia soltaram a voz no meio da Rua do Passeio Público.

Carcará balançou a cabeça, franziu a testa, torceu a boca, o nariz e teve a infeliz ideia de dizer que não gostou da letra do doutor Leigislau. Naquela hora me arrependi por ter escolhido a carreira de músico. No mundo havia tantas profissões menos preocupantes e arriscadas. Doutor Leigislau desabou em tristeza e decepção:

– Do que você não gostou, meu caro rapaz?- Perguntou o delegado, solene como sempre.

– Acho que é preciso melhorar! Respondeu o casca grossa.

– Pois fique à vontade! Disse-lhe o delegado, já passando a letra e a partitura para o retoque final do colega compositor.

E não é que o ferrabrás estava realmente certo. Carcará inspiradíssimo, riscou daqui, esticou dali, reescreveu acolá, misturou uma parte de sua composição no samba do doutor e dentro de pouquíssimos instantes estava pronta uma das músicas mais brilhantes que já ouvi em todos estes anos de partiturista musical na calçada da rua do passeio público.

A pedido da dupla refiz a partitura. Doutor Leigislau ficou encantadíssimo e os olhos do Carcará brilhavam ao ver a emoção do parceiro. Os dois emendaram num bate papo animadíssimo sobre a música popular brasileira, fazendo questão de não comentarem sobre suas atividades extramusicais.

Partiram abraçados pela Rua do Passeio Público a fora, cantarolando

a primeira de muitas outras magníficas parcerias da entrosada dupla. E eu que não sou de "xisnovear" ninguém, mantenho o meu silêncio peculiar, passaporte fundamental para a perfeita relação diplomática com todos os lados da fronteira.

Dudu Fagundes O Maestro Das Ruas
Enviado por Dudu Fagundes O Maestro Das Ruas em 23/10/2016
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