DIGO DO CAVACO

Durante muitos anos escrevendo partituras musicais para registro na velha calçada da rua do Passeio Público, na Lapa, em frente a faculdade federal de música do Rio de Janeiro, conheci muitos artistas geniais. Porém um dos mais incríveis, sem sombra de dúvidas, foi o Ari do Cavaco. Um compositor extraordinário. Portelense ferrenho, amante inveterado da azul e branco de madureira. Autor de sambas enredos memoráveis, antológicos, que entraram para a história da música popular brasileira. Sempre vinha me encontrar com suas letras e melodias tão ricas quanto seu sorriso, sua amizade, seu afeto. Ari dos braços imensos, enristes, desde longe estendidos, caminhando alegre em direção ao meu abraço:

-Fagundes, meu amigo, meu maestro! Vim fazer a partitura de mais um samba para minha amada Portela!

E eu abria lentamente meu caderno de partituras numa página em branco, respirava fundo, sabendo que o que estava prestes a ouvir era algo realmente esplendoroso. Desenhava calmamente, quase que artesanalmente uma clave de sol. Ari do Cavaco sempre sabia o tom de suas melodias de cor. Eu fazia a armadura de clave e em pouco tempo iniciava a escritura musical de uma obra fantástica, incrivelmente rica, original. Depois o acompanhava várias e várias vezes com meu violão velho de guerra, parceiro inseparável de voz tranquila, dissonante, serena, bailando harmonicamente por melodias excepcionais, testemunhando ocularmente a real história da música popular brasileira. Meu companheiro de aprendizagem, vasculhando como um cientista o "dna" no sangue que corre pela veia artística de um poeta de verdade. Ia dissecando o velho sambista, aprendendo, pesquisando, tentando desvendar os mistérios implícitos na formação celular de uma obra prima.

Hoje cedo, ainda caminhando em direção a rua do Passeio Público, na Lapa, parei em frente a banca de revistas do Carlão onde costumo foliar os tabloides no inicio da manhã. Num canto da página do jornal o Globo, na sessão de obituários estava a notícia de seu falecimento após uma noitada de samba e despedida na quadra de sua tão querida portela. Emudeci.

A morte de Ari do Cavaco fez-nos reunir numa enorme corte de súditos, composta por diferentes compositores das mais diversas ruas do Rio de Janeiro, para prantear a partida eterna de um rei. Um rei de verdade. Rei da nossa gente simples, um rei de roupas surradas, um rei sem riqueza, um rei sem palácio. Rei dos cariocas, rei do samba, rei da noite, rei da Lapa, rei dos malandros da Praça Mauá, rei da beira do mangue, rei de Madureira, rei de sangue azul e branco, cores da sua Portela, escola que tantas vezes enaltecera em seus belíssimos sambas.

Imagino a farra do Ari do Cavaco entrando no céu com sua alegria incomum. Ari dos braços imensos, enristes, desde longe estendidos, caminhando para abraçar:

-São Pedro, meu amigo, meu camarada! Tô chegando meu velho!

-Grande Ari do Cavaco, sejas muito bem vindo!-Grita o santo abrindo-lhe rapidamente as enormes portas do céu - Que honra receber um sambista com tantos predicados. Aqui tu podes escolher ficar onde bem quiseres. Tem o povo que veio do Salgueiro de Geraldo Babão, da Vila Isabel de seu China, da Mangueira de Babau, da Mocidade de Toco, do Império Serrano de Mocorongo, da União da Ilha de Didi, da Imperatriz de Amauri, pode se juntar com a turma de qualquer escola de samba que desejares. Acredito que irás preferir ficar com a turma da Portela de Candeia, Natal, Manacéia, Paulo Benjamin de Oliveira...

Nessa hora Ari do Cavaco com seu jeito bonachão, benfazero encurta a conversa:

-Que nada meu santo, vamos juntar tudo numa escola de samba só!

São Pedro rindo surpreso:

-Gostei da ideia!

Ari do Cavaco continua:

-Meu santo, vamos fundar o Grêmio Recreativo Escola de Samba Unidos do Céu!

-Boa Ari, misturemos todos os ritmos, todos os talentos, todos os compositores, todas as cores, vai ser um grande Arco Iris! - completa o santo entusiasmado.

Nesse instante Ari para de caminhar, reflete por alguns segundos e diz sussurrando aos ouvidos do velho pescador:

-As cores têm que ser azul e branca...

São Pedro preocupado:

-Mas Ari, essas são as cores da sua Portela. Isso vai gerar um certo ciúme por parte das almas dos santos sambistas oriundas das outras agremiações...

Ari sem deixar São Pedro continuar:

-Meu santo, quais foram as cores que o próprio Criador escolheu para pintar o céu?

São Pedro pensativo:

-O céu é azul e branco...

Ari prossegue:

-E a cores do mar da Galileia onde Ele viveu?

-Azul de ondas brancas... -Balbucia o santo nostalgicamente.

Ari já num tom quase imperativo no ouvido do velho pescador:

-E as cores do manto sagrado que Ele mesmo teceu para cobrir sua mãezinha, nossa senhora Aparecida?

O santo balançou a cabeça para cima e para baixo concordando em silêncio.

Ari do cavaco volta a caminhar abraçado a são Pedro, cumprimentando alegremente velhos e novos amigos, fazendo planos para o grande carnaval do céu. Depois de um longo tempo de caminhada pelas ruas de ouro e cristal da cidade celeste, o santo anfitrião do paraíso pára de súbito e dispara uma ultima pergunta ao amado sambista:

-Ari, qual será o enredo do primeiro ano do Grêmio Recreativo Escola de Samba Unidos do Céu?

Ari do Cavaco ajeitando tranquilamente a auréola brilhante sobre sua própria cabeça, passando as mão sobre suas novas vestes reluzentes, olhou fundo nos olhos do famoso discípulo, pois as duas mãos em seu ombro e sussurrou cheio de intimidades:

- Meu caro colega Don Pedrito, vai ser a grande revelação, a maior de todos os tempos...

O santo chega mais perto para ouvir o segredo precioso desvendado por seu colega, agora também santo, santo Ari do Cavaco, o mais novo protetor dos artistas das ruas da velha Lapa, das noites cariocas, dos malandros, das prostitutas da Praça Mauá, da beira do mangue, das rodas de samba de todo o Rio:

-O enredo será:

-"Pelas cores do céu, do mar da Galileia,

e do manto sagrado que cobre a padroeira...

Deus é da Portela,

é de madureira!"

São Pedro grita entre uma estrondosa gargalhada:

-O Homem vai gostar!

E os dois seguiram abraçados, sorrindo, cantando antigos sambas juntos na direção de Deus.

O Maestro Das Ruas Dudu Fagundes

Dudu Fagundes O Maestro Das Ruas
Enviado por Dudu Fagundes O Maestro Das Ruas em 19/10/2016
Reeditado em 12/02/2017
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