HISTÓRIA DA ESCOLA DE FARMÁCIA E ODONTOLOGIA DE
SÃO SEBASTIÃO DO PARAÍSO (1929 – 1938)

 
            A Escola de Farmácia e Odontologia de São Sebastião do Paraíso, no Sul de Minas, foi criada poucos meses antes de começar a crise econômica de 1929. O capitalismo passaria pelos seus piores dias com a falência das principais bolsas de valores dos Estados Unidos e da Europa. As consequências atingiriam toda a economia e mais fortemente os setores ligados ao mercado externo. Os cafeicultores da região pressentiam a gravidade da situação. Mesmo assim, um grupo empreendeu um projeto sem precedentes na história local, que foi a criação dos primeiros cursos superiores da cidade. Em maio de 1929, conforme publicado na imprensa, seria inaugurada a Escola, mas houve um pequeno atraso e as aulas iniciaram-se no início do segundo semestre.

            À frente do projeto estavam dois jovens professores do Ginásio Paraisense. O dentista Lamartine Amaral, que assumiu a direção, e o farmacêutico Raymundo Calafiori, a vice direção. Um dos argumentos usados para justificar a criação da Escola seria a carência de cursos superiores na região. Entretanto, no ano anterior tinham sido criados os mesmos cursos em Ribeirão Preto, SP. O funcionamento da Escola contou com os préstimos do professor Francisco de Alencar Assis, encarregado da secretaria, enquanto a tesouraria ficou por conta do agrimensor Lucas de Souza Dutra.

            Além do pessoal da administração, um dos desafios foi a formação da equipe de professores. Dezesseis profissionais da área foram anunciados como membros do corpo docente. Embora quase todos jamais tivessem exercido o magistério, não havia ilegalidade na situação porque se tratava de curso livre, como tantos outros existentes no país. Por ocasião da vistoria realizada pelo primeiro inspetor federal, no início da Era Vargas, ficou registrado que alguns professores passavam a maior parte do tempo em suas fazendas e não atuavam como profissionais da área de saúde. O inspetor alegou que não conseguiu encontrar com todos os docentes e que sua intenção era conversar com cada um deles. Esse episódio causou uma impressão não muito abonadora sobre o trabalho realizado pelo corpo docente.

            No sistema anterior da República Velha, o componente político estaria bem mais próximo da estreita relação estabelecida entre o governo estadual e os líderes políticos locais. Mas com o advento das regras ditadas pela visão nacionalista do presidente Vargas, mesmo com as posições extremadas da fase de transição, o centro de fiscalização do ensino superior passou a ser na capital federal, Rio de Janeiro, bem distante do poder de influência dos líderes regionais.

            Cinco dos dezesseis professores eram os médicos: João Coutinho Soares, Paulo Reis e Silva, Nestor Moura, Salvador Grau e Benedito Alípio Ferreira; quatro eram dentistas: Lamartine Amaral, Antonio Salviano Martins, Waldemar Calafiori e Francisco Salles Neves e sete eram farmacêuticos: Raymundo Calafiori, Affonso Pinto de Carvalho, Francisco Villela Carvalho, João Joele, Hermengaudio Nicácio, Aristeu do Amaral Brigagão e Zilah Carvalho, assistente do Gabinete de Física, Química, História Natural e Microbiologia.

            As primeiras aulas estavam sendo ministradas, depois de poucos meses, com base no sistema instituído no período governado pelos últimos coroneis quando se iniciou a crise econômica e política. Os próximos anos trariam as mudanças ditadas pelo nacionalismo defendido por Getúlio Vargas. Naquele momento, além das poucas instituições de ensino superior mantidas com recursos federais, existiam os cursos livres. Essa liberdade de organizar cursos significava que os responsáveis não estavam obrigados a seguir normais que nem mesmo existiam na legislação nacional.

            Os cursos livres estavam isentos de seguir regulamentos nacionais, padrões curriculares e laboratoriais dos cursos mais tradicionais, e nem mesmo critérios para compor o corpo docente. O governo federal fiscalizava cursos superiores existentes nas capitais e os governos estaduais reconheciam o funcionamento de outros cursos existentes no interior ou na capital, conferindo-lhe o estatuto de cursos equivalentes aos da capital. Com essa equivalência, o diploma tinha apenas validade estadual.

            Esse sistema mudou com a criação do Ministério da Educação, em 1930. A existência dos cursos superiores livres estava com os dias contados. Um pouco antes, Francisco Campos ainda exercia o cargo de Secretário do Interior de Minas, quando o professor Lamartine foi à Belo Horizonte para tratar da validade dos diplomas que seriam conferidos pela Escola superior paraisense. Adquirir o direito de equiparação significava que os formados na Escola poderiam exercer a profissão em qualquer cidade de Minas. A viagem deu resultado, o decreto de equiparação foi assinado pelo governador que pretendia ser o próximo presidente da República. Lamartine ainda estava na capital, mas a notícia da equiparação chegou a Paraíso, transmitida via radiograma ao prefeito capitão Emílio Carnevale.

            No dia seguinte à divulgação da notícia, as aulas da Escola foram suspensas para que os estudantes pudessem comemorar da festa. O entusiasmo foi seguido pelo diretor do Ginásio Paraisense que também liberou os estudantes. A mesma decisão foi tomada pelo diretor do Grupo Escolar e pela diretora do Colégio Paula Frassinetti. São gestos que expressam o contexto da época e o momento de júbilo vivenciado pelos dos protagonistas da história da educação local. A população paraisense ficou sabendo da notícia por meio um boletim distribuído nas principais ruas e bairros da cidade, no dia seguinte ao recebimento da notícia. Por um lado, uma conquista para a cidade e, por outro, cenas da campanha das eleições para a Presidência da República realizadas no início de 1930. O correspondente local de um jornal paulista não poupou elogios ao presidente de Minas e enfatizou que o “todo o povo paraisense estava vibrando e que os maiores elogios estavam sendo feitos ao presidente Antonio Carlos”.

            Com a reforma educacional de 1931, o governo começou a implantar um sistema de fiscalização dos cursos superiores. A prática consistia em nomear um inspetor com formação na área do curso a ser fiscalizado. Esse inspetor viajava para verificar as condições locais de funcionamento dos cursos, avaliava laboratórios, biblioteca, conversava com a direção e professores. Assim, o Conselho Nacional de Ensino nomeou um inspetor federal para fiscalizar a Escola superior paraisense, como vinha fazendo com as demais escolas da área de saúde.

            O contexto de transição estava impregnado de certo clima retaliação ou de reação política subjacente, pois se pretendia acabar com as práticas anteriores. Por outro lado, havia questões específicas sobre a formação profissional em nível superior. A intenção era proibir os cursos livres, se esses não conseguissem cumprir as normas que começavam a ser instituídas. As medidas pretendiam formar as bases de um sistema nacional de ensino superior. Essa foi a principal questão que levaria, em 1938, ao fechamento dos dois cursos da Escola paraisense.

            Outro problema indicado nos relatórios dos inspetores era a inexistência na Escola de laboratórios para os estudos práticos de Anatomia e Fisiologia, indicando que a formação estava sendo feita apenas de forma teórica. Desse modo, os pareceres finais dos relatórios de inspeção criaram dificuldades de ordem técnica, as quais poderiam ser resolvidas, caso houvesse recursos financeiros disponíveis e efetiva intenção de adquirir os referidos laboratórios. Mas, parece que esse não era o caso, pois os inspetores registraram outro problema quanto à integralização do capital da Escola, que a mantenedora deveria fazer como previa o estatuto. Com esses problemas, corria-se o risco de o Conselho determinar a suspensão das atividades.

            Por isso, José de Souza Soares aceitou a tarefa de ir ao Rio de Janeiro, para impetrar uma representação junto ao referido conselho, tentando evitar decisão contrária aos interesses da escola. Não se tratava de resolver querelas provinciais ou afetas ao território que o ilustre advogado e os líderes políticos locais conheciam muito bem. Era um tempo de inflexão na curva histórica. De fato, na capital federal, Souza Soares teve dificuldades em acessar o processo com os relatórios elaborados pelos inspetores, os quais seriam analisados na reunião do Conselho Nacional de Ensino.
            Os documentos estavam guardados nas gavetas ministeriais e não mais funcionavam as relações instituídas nos tempos da República Velha. Devido a esse obstáculo, resolveu redigir e publicar um artigo num jornal de grande circulação nacional, apresentando a defesa da Escola. A representação foi dirigida ao presidente do Conselho Nacional de Educação. De início, Souza Soares esclarece que escola superior era uma fundação civil, com capital próprio e suficiente para funcionar, mesmo sem contar com as anuidades cobradas dos estudantes. Em seguida, esclareceu que as aulas funcionavam em excelente prédio próprio, avaliado em 350 contos de réis, ressaltando que esse aspecto deveria ser considerado na avaliação da Escola.

            Os relatórios tratavam do problema da integralização do capital da Escola. Constava na documentação que o capital tinha sido elevado de 50 contos de réis, como estava estipulado no estatuto de criação da instituição, para 250 contos de réis, pois se tratava de mostrar a existência de recursos suficientes para adquirir os laboratórios exigidos para os estudos práticos de Anatomia e de Fisiologia. Na realidade, apenas a quinta parte do valor tinha sido integralizado pela mantenedora. Em outros termos, o aumento teria ocorrido apenas nos registros burocráticos e internos e a mantenedora não havia depositado os 200 contos de réis supostamente aumentados no capital da Escola. Essa foi uma situação incontornável. Assim, na representação impetrada, o ilustre advogado explicou com sutileza que os 200 contos de réis faltantes seriam depositados “a qualquer momento que o poder competente exigisse”. Mas essa atitude não foi aceita pelos inspetores que entenderam ter sido uma estratégia nebulosa: declarar um capital e integralizá-lo apenas a quinta parte.

            O advogado expressou sua discordância por ter sido obrigado a ler às pressas os relatórios. Esclareceu seus direitos profissionais de ter acesso aos autos do processo que ameaçava a continuidade da escola. Ao finalizar a representação solicitou ao então ministro Francisco Campos que ordenasse a publicação dos relatórios dos inspetores que visitaram a Escola de São Sebastião do Paraíso. Tendo em vista que os cursos superiores funcionaram por mais seis anos, após o episódio ocorrido em 1932, a ação impetrada pelo advogado paraisense foi exitosa, pois conseguiu superar as dificuldades daquele momento, embora não tenha resolvido a questão de modo definitivo. Na época de funcionamento dos dois cursos, a cidade contava com uma dezena de farmacêuticos: Antônio Amaral, Braz Calafiori Netto, Edmundo Machado, João de Paula, José Eugênio de Silos, José Ananias Alves Ferreira, Octavio Peres, Aristeu Brigagão, Hermengaudio Nicácio e Carlos Grau. Esses três últimos pertenceram ao corpo docente da Escola.

            No início de 1934, uma revista intitulada Gazeta da Pharmacia publicou que cinco novos farmacêuticos haviam sido diplomados na Escola de Farmácia de São Sebastião do Paraíso, mencionados como proprietários de farmácia na cidade. Esses profissionais eram os seguintes: Domingos Alarcon, Arias de Almeida, Manoel Messias da Silva, Abílio Coutinho e Sebastião de Carvalho.

            Após nove anos de funcionamento a Escola teve suas atividades encerradas em vista de uma resolução do Conselho Nacional de Educação, em 1938. No último ano de funcionamento havia estudantes matriculados no curso de Odontologia. Francisco Duarte Filho, dentista paraisense que atuava na década de 1960, teria estudado nessa escola superior pioneira da cidade. Em 1939, uma revista do setor farmacêutico publicou matéria sobre o problema do reconhecimento dos cursos superiores de Farmácia. O principal desafio era atender às exigências da nova legislação e cita o caso do fechamento da Escola de São Sebastião do Paraíso. Segundo o periódico, o objetivo da nova legislação era regularizar o funcionamento de escolas que não apresentavam os requisitos considerados mínimos para o exercício profissional.

            Ficou no imaginário coletivo local certa indignação pelo fechamento da primeira escola superior da cidade. Mas, o episódio ilustra um aspecto importante da história dos primeiros cursos superiores brasileiros, fora dos grandes centros e nos momentos que precederam a implantação da Universidade de São Paulo. Por esse motivo, os protagonistas da Escola têm seus nomes inscritos na história da educação superior do país, diante do desafio de pensar a estreita conexão existente entre eventos locais e globais. Merece destaque o empenho dos professores Lamartine Amaral e Raymundo Calafiori. Assim, o retorno vivenciado pela história permite indagar a respeito das lições de outrora que podem auxiliar no entendimento dos desafios contemporâneos.

            Finalmente, considerando o Estado de Minas e a região paulista próxima a São Sebastião do Paraíso, desde 1914, estava funcionando a Escola de Farmácia e Odontologia de Alfenas. Havia outras escolas congêneres, tais como em Ouro Preto e Juiz de Fora. Em 1928, foram instalados os mesmos cursos na cidade paulista de Ribeirão Preto. A criação da primeira escola superior paraisense ocorreu no declinar de uma década de desenvolvimento econômico proporcionado pela cafeicultura regional. Entretanto, essa condição foi profundamente alterada pela crise econômica iniciada em 1929, que abalou diversos setores da economia nacional e, em particular, o ciclo evolutivo da história da educação em São Sebastião do Paraíso.