O HUMANO DO SE “SER” MÉDICO

Em sincera homenagem.

Hoje, dia dezoito de outubro de dois mil e dezesseis, comemoramos mais um dia do médico e aqui registro que eu comemoro exatos trinta e dois “dias do médico”.

Parece pouco, se cada um desses dias não estivesse atrelado a trezentos e sessenta e quatro dias de exercício médico, mais um a cada quatro anos, descontando os vinte anos que demorei para o preparo do todo, da pré escola até o término da universidade, afora a pós graduação médica” e os pós “ full time” de todos os demais dias de estudo da minha vida de médico.

Mas isso não importa, não é disso que quero falar.

Quero falar que trinta e dois anos de exercício médico não são trinta e dois dias.

De repente, a fazer as contas, “noves e anos bissextos foras”, (nunca fui lá aquelas coisas em matemática!-meu professor dizia que eu era energúmena na arte e mesmo assim eu o adorava!) eu comemoro onze mil seiscentos e oitenta dias de ser médico, então, digo que resolvi escrever...também para mim.

Escrevo para me acalentar, é a mais pura verdade.

Sei que muitos médicos (presentes e futuros) e não médicos lerão minha crônica e todos entenderão perfeitamente o meu relato...e o meu recado...de alma para alma.

Tenho muitas histórias para contar, histórias humanas e humanísticas de trocas, histórias tristes e histórias alegres, histórias de sucesso e insucessos, histórias que me tocaram profundamente, e se não as tivesse, com certeza não teria valido a pena da minha jornada TÃO DURA dedicada às tantas gentes, às quais procurei dar o meu melhor.

Digo-lhes que obviamente não só a mim escrevo porque hoje é o dia do médico, na verdade, não gosto muito dessa coisa de “dia de”, coisas ou pessoas, transformadas em meros instrumentos de congratulações e marketing vazio.

Não, não sou de estereótipos, eu gosto da essência e da verdade.

Afinal, todo dia é dia de tudo e de todos..desde que seja verdade!

Acho que é porque ser médico, ouvir e auscultar pessoas, olhar, enxergar, cheirar situações e possibilidades, tocar pessoas, diagnosticar o que se vê o que não se vê, aconselhar pessoas, silenciar com as pessoas , chorar com as pessoas, rir, entender seus enredos e entornos de vida, ganhar a confiança das pessoas, o crédito, o agradecimento, o respeito, até a fé das pessoas, acolher pessoas no caminho da vida e no derradeiro leito de morte,enfim, nessa dinâmica “médico -paciente” não poderia faltar a VERDADE...tampouco o amor por gente...de todas as gentes.

Asssiti dos casebres aos palácios, gente de todas as condições de vida reais e surreais, e pude aprender que todos somos igualitariamente...gente como todas as gentes, sujeitas às mesmas intempéries da vida: eis minha maior e mais humanística lição.

Escrevo principalmente para comemorar, porque frente a esse número enorme de dias que citei, que é mais que a metade da minha vida, se não tivesse me valido a alegria e o prazer de atuar na profissão, deduzo que eu teria perdido minha vida toda em prol do nada.

Deve ser muito triste tanto esforço de vida focada naquilo que se acredita e se escolheu como missão, para se terminar com a sensação do nada.

Pior que isso , seria muito injusto.

Mas eu escolhi pelo tudo...e por todos: e nunca me arrependi...

Conto que , certa vez, ao ser convidada para uma mesa de orientação vocacional, um aluno me perguntou o que precisava “ter ou ser” para se ser médico.

Parecia uma pergunta fácil, mas nunca é fácil responder sobre profissões, principalmente para um adolescente de quinze anos, a quem, de pronto, se “obriga” a resolver o que se quer ser quando crescer...logo ali, aquele crescer que chega de repente, como barba, sem avisar, tão rapidamente para todos os seres.

Fui pragmática: para todas as profissões é preciso se ter dom e vocação, que não são sinônimos.

O dom é a tendência inata, a vontade , a disponibilidade; a vocação é o chamado que sentimos dentro de nós, a satisfação do servir, qual um sacerdócio mesmo, a abdicação do tempo de si em prol do outro, vocação cujo chamado, na maioria das vezes, nos toca bem precocemente na vida.

Estar médico, sem ser médico por dom e vocação, é uma trajetória penosa, e já vi muito disso pelo meu tempo.

Então, esclareci ao aluno que para se ser médico, médico de verdade, é preciso “pulsar” pelo acolhimento das pessoas.

É preciso gostar de gente, se interessar pelas gentes.

É preciso compromisso com o social.

É preciso pegar nas mãos...entrelaçá-las.

Também é preciso humildade para entender que você é um mero meio, não necessariamente “a solução” de todos os problemas.

Porque há muitas situações inviáveis às ciências médicas, mas nunca para o humanismo que acolhe sempre, e durante o se “ser” médico , se é preciso saber identificar o melhor caminho, a hora de começar, recomeçar e de prosseguir, também é preciso entender a hora de parar.

Certa vez, à beira dum leito de morte, alguém segurou minha mão e me disse assim: "não me deixe morrer, por favor".

E lhes conto que demorei para entender porque não consegui aquele milagre... e perdi a paciente segundos depois.

Médico nunca foi, não é... e nunca será Deus.

Se houver arrogância no exercício da profissão...ali ainda não se captou a essência do que é ser verdadeiramente médico.

É preciso entender que ser médico é ser humanamente gente como qualquer um dos nossos pacientes.

Empatia, essa é a principal virtude.

É olhar para a própria natureza de mesmo “barro”.

É assumir uma cumplicidade entre seres iguais , aonde um busca e o outro acolhe.

Quantas vezes o acolhimento se inverte...

Médico sente angústia, sente medo, sente dúvidas, sente cansaço, sente fome-todas elas!- sente sono, sente incertezas...médico reza no sufoco da urgência, pede socorro em silêncio, médico chora, médico sofre junto, médico adoece, médico lamenta as perdas...das vidas...que poderiam ser salvas.

Médico lamenta inclusive as perdas evitáveis...das tantas vidas perdidas por todas as causas.

Médico não sabe tudo!

Médico não acerta sempre...porque lidar “com vida, saúde e doença” é lidar com o imprevisível no mutável dum meio adverso, focado por vetores multifatoriais de diversas dificuldades.

Pacientes não têm sexo, idade, nacionalidade, cor, raça, legenda política, condição social... quando o mérito for assisti-los como pessoas na qualidade de médico.

Ao menos não deveriam ter.

A relação médico-paciente é uma relação indivisível e estreita , de entrega e respeito mútuo, cuja ocorrência não se delineia nos palanques das eleições,a exemplo do tudo que sofremos nos últimos tempos.

A ciência não tem fronteira...e ninguém é dono dela, muito menos os políticos que por ventura, possam transformar médicos e doentes em moeda de troca no balcões dos seus "negócios".

É preciso saber que o exercício da medicina é um livre exercício de inter-relação humanística aonde só cabe o médico e o paciente...e às vezes a família, se o paciente assim o permitir.

Outro dia, enquanto almoçava, pude escutar, ao meu lado, um debate acalorado num restaurante , e em meio às nossas dificuldades econômicas de Nação, uma pessoa, toda muito gratificada, se manifestava assim:" bem feito, é isso aí, agora as dificuldades do país é para todos, e finalmente os médicos brasileiros vão todos virar UBER”.

Não entendi...sinceramente não entendi.

Achei aquilo duma crueldade plantada,posto que também não deve ser fácil ser UBER nos dias de hoje...

Ah, e um dado cultural em mutação: não precisa me (ou nos) chamar de doutor...se, por ventura, tal vocativo soar como ofensa social.

Médico de verdade não se ofende com Bullying político programático. Nem temos tempo para tal...e estamos preparados para lidar com todo tipo de sentimento apequenado, adubado nos tempos.

Ademais, passei do tempo de acreditar que somos doutores em alguma coisa nessa vida...com ou sem título de doutorado e tudo o demais que o valha.

Quando você pensa que aprendeu tudo sobre aquele caso, sobre aquela doença, sobre aquela molécula, sobre aquele tema, sobre aquela monografia, sobre aquele aparelho, sobre aquela verdade científica, enfim, algo ou alguém lhe ensina que sempre se tem muito mais a aprender : é o puxão de orelha da humildade a nos tirar dos pedestais da vida, fato que sempre marca presença em todas as profissões, e com os médicos não seria diferente.

A vida de médico, de fato, “per se” já é um doutorado compulsório sobre gente, e que não pede pelo título, só pede pelo reconhecimento e pelo respeito pela nossa suada missão, principalmente num país chamado Brasil.

A gente não aprende como ser super herói , ou master mágico, nos bancos da faculdade de medicina.

Eu pensei em terminar meu texto a lhes dar um exemplo marcante do dia- a- dia, sobre a satisfação de se ser médico, dentre tantos “causos” que já vivi. Claro, acho que já escrevi um livro...sobre.

Lembrei de um recente, algo que ouvi e que jamais esquecerei, assim que, tarde dessas, atendi àquela ligação em meio a uma consulta:

“ Alô, oi, tudo bem?- comigo tudo ótimo!- é que...sabe, hoje é meu aniversário e eu resolvi lhe ligar. Estou tão feliz de ter sarado e de ter vontade de comemorar a vida, com festa e tudo, que sou eu que queria lhe dar os meus parabéns”- me falou literalmente uma paciente que acabara de sair dum grave quadro depressivo.

Confesso que aquilo foi inédito na minha vida de médico.

E claro, eu fui pega de surpresa, meu peito acelerou...porque médico, acreditem, também tem coração...que dispara.

O preço disso? Só a vida nos acerta: a felicidade do dever cumprido.

A felicidade de promover um alivio, a quem quer que seja, a qualquer tipo de sofrimento.

Quantas dores...meu Deus.

"*e todo mundo é igual quando sente dor".

Aquela coisa impagável de ter feito alguma diferença, ainda que tão pequenina, na vida de alguém.

O que seria da ciência estática não fosse ela a nos proporcionar essa alegria de ajudar?

Lembrando que quando se trabalha com amor, em qualquer profissão, é a remuneração que vai atrás do profissional: a constatação viva da sagrada lei pétrea, irrevogável: “ a lei da semeadura”.

Feliz dia dos médicos a todos os meus colegas...e futuros colegas, médicos de verdade.

E aos meus caros pacientes o meu “muito obrigada!” pela oportunidade desse exercício humanístico...algo inenarrável, a despeito da minha verborragia textual.

Rezem pelos médicos do Brasil e do mundo.

Nós urgimos por perene oração.

Gratíssima pela satisfação dessa interação de vida e “de alma” que, a cada dia mais, tanto me faz crescer no quesito humano de se ser médico e gente, simplesmente assim, como qualquer gente da espécie humana... por ventura, humanizada.

Nota* alusão a um verso de Cazuza.