Lembranças

Lembanças!

Hoje, na hora do Angelus, quando se toca a Ave Maria, sei lá de quem, mas gosto de ouvir, estava encostado na lixeira de minha confortável casa, esperando a Emerenciana chegar da missa, matutando em nada. De repente, uma pessoa descendo a rua me teleguiou para mais de 50 anos atrás.

Eu, há mais de 50 anos, sentado na beira de uma fonte de água cristalina, caindo e correndo livre e ligeira por um regato, observava e nada pensava.

De repente, há mais de 50 anos atrás, duas pessoas, descendo uma encruzilhada, duas mulheres com duas trouxas na cabeça, andando, andando como se nada mais fizesse sentido a não ser andar. Atrás das duas mulheres, com as duas trouxas na cabeça, andando como se nada mais fizesse sentido a não ser andar, dois homens montados a cavalo, sorridentes entabulavam uma conversação, como se nada mais fizesse sentido a não ser conversar.

Dali de onde eu estava, há mais de 50 anos atrás, as mulheres com suas trouxas nas cabeças e seus homens montados em seus cavalos conversando fazia o mesmo sentido, nenhum sentido, apenas uma sensação de estranheza, uma dúvida, que há mais de 50 anos eu não sabia desvendar, e que me impactou durante toda a minha vida.

Aí, hoje, na hora da Ave Maria, a Mãe de Jesus, encostado na lixeira de minha confortável casa, esperando a Emerenciana chegar da missa, matutando em nada, tive a oportunidade de resolver a dúvida de há mais de 50 anos atrás.

Não eram duas, apenas uma mulher. Não eram duas trouxas, mas várias sacolas, penduradas nos dois braços. O peso das trouxas, hoje transmudadas em sacolas, se fez visível, quando a mulher , num espaço de um quarteirão, as acomodou no chão, por duas vezes, para descansar.

Na última vez que vi, na minha frente, perguntei: está pesado? A mulher sorrindo, respondeu: Graças a Deus está!

Era a feira do mês.

Hoje, com mais sabedoria que há mais de 50 anos atrás, voltei a indagar: o dinheiro deu para pagar? A mulher ainda sorridente voltou a responder: Graças a Deus, sim.

Do conforto da minha lixeira, 50 anos depois, eu sabia que não haveria um cavaleiro vindo atrás, é quase certo, o homem daquela mulher estaria, graças a Deus, em algum outro lugar. Do meu lado otimista, ele estaria, por que hoje é sábado, tomando cerveja e jogando sinuca com os amigos; do lado pessimista, que a Emerenciana não gosta, estará bêbado doido de vontade de dar uns tabefes na mulher, por ser tão lerda e não voltar para casa depressa...

Mas, depois de mais de 50 anos, a sensação de estranheza, embora persista, sugere o tanto que Deus é ingrato com as mulheres, deixou só para elas, o que havia prometido a Adão e Eva, comer o pão com o suor do rosto!

João dos Santos Leite

Psicólogo

Joao dos Santos Leite
Enviado por Joao dos Santos Leite em 15/10/2016
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