PELOS MARES DE ALZIRA

A minha lembrança mais antiga... Acho que é de mamãe, num jantar, contando a estória dos meus avós quando vieram da Itália. As aventuras e perigos da viagem, as dificuldades enfrentadas com coragem e persistência... E da importância de lutar por nossos sonhos e direitos, liberdade e trabalho digno! No final, olhando nos meus olhos, ela disse: “Ainda mais sendo mulher”...

Eram tempos difíceis aqueles, e eu a caçula da casa! Primeira guerra acontecendo, revolução comunista e o pavor da gripe espanhola... E se até o Titanic afundou, na primeira viagem, – “o maior e mais seguro navio do mundo” – imagina a insegurança que se tinha pela frente? Ainda bem que, por ser criança, minha imaginação transformava os temores e tristezas em inocentes brincadeiras de roda!

“Alzira, antes da diversão, a obrigação! Primeiro os deveres da casa!”. E assim, mamãe colocava meus pés de volta ao chão...

Jamais reclamei, e a bem da verdade acatava em silêncio esses rigores da educação. Na escola não era diferente, e apesar das dificuldades consegui concluir o ensino primário... Não me recordo bem das amigas de classe... Já dos livros... Esses os verdadeiros ‘amigos’ que me encantam e fascinam até hoje! Com eles, pude viajar pelos mares de Júlio Verne, por aventuras de Charles Dickens... E no prazer de sonhar aos encantos de uma poesia!

Tenho saudades desses bons momentos... Tão distantes no tempo...

Acho que a velhice parece com um livro antigo: fica amarelecido com o tempo, corroído pelas traças dos anos, e esquecido no fundo de um baú... No caso dessa velha tagarela aqui, nesse pequeno quarto de asilo mesmo! Mas não me importo... E pra ser sincera, prefiro continuar acreditando que os “velhos”, contando suas estórias do passado, ajudam a compreender no presente os caminhos para um futuro melhor!

... Castro Alves é o meu poeta favorito... E seu “Navio Negreiro”, uma obra prima que denunciou a escravidão da época, conhece?

“Negras mulheres, suspendendo às tetas magras crianças, cujas bocas pretas rega o sangue das mães [...] São mulheres desgraçadas,[....]. Que sedentas, alquebradas, de longe, bem longe vêm... Trazendo com tíbios passos, filhos e algemas nos braços, n'alma — lágrimas e fel...”.

Que sofrimento destas mulheres... Lembram-me dum fato triste, que até contei ao médico, certa vez, numa consulta: “Dona Alzira, por que sua coluna ficou torta?” Foi uma surra de cinta que levei de papai, quando eu tinha nove anos... Mas passei erva de Santa Maria – “Una santa rimedio”, como diria minha avó – e restaram poucas cicatrizes nas costas... Talvez um pouquinho mais na minha alma...

Não guardei rancor de papai, pois sei que ficou muito abatido pela morte de mamãe. Casou-se novamente, é bem verdade, mas... Como a madrasta não gostava de crianças... Acabei por ir morar com minhas irmãs e assim não aborrecê-los! Em troca, trabalhei pesado revezando as tarefas diárias pra cuidar de suas casas.

Talvez eu fosse como uma escrava do navio negreiro... Prisioneira de minhas renúncias...

Até que num certo dia... Conheci um belo italiano amigo de meu cunhado! Foi amor à primeira vista... E não demorei a dividir minha vida com a dele! Chegaram os filhos, a família cresceu, e com ela um sentimento enorme de felicidade... Como os raios de sol ao se libertarem no final da tempestade! Se não me engano, foi nessa época que a mulher passou a ter direito de votar, sabia?

Eram tempos de bonança, até uma nova revolução: a Constitucionalista! Revolta armada contra o golpe de estado do Getúlio Vargas...

Já não era mais possível transformar os temores e tristezas em brincadeiras de roda... E anos depois, meu marido foi convocado para a segunda guerra... Cruzou os mares de Júlio Verne e aventurou-se pelas terras de Charles Dickens, mas como o verso de um poema triste, “derramou o sangue em batalha inglória, encerrando os dias de sua curta estória”!

... Ressurgia imponente, o navio negreiro em minha vida...

Não tive tempo para tristezas... Trabalhei de sol a sol, sem perder a dignidade! As gotas de suor que derramei formou o mar por onde meu barco seguiu: às vezes sem rumo, noutras sem direção... Mas nunca naufragou! E foi assim que criei meus cinco filhos, na rota da liberdade que sonhei e pelo direito de navegar em calmaria, buscando um porto seguro na viagem dessa vida...

E hoje volto a chorar... Mas com lágrimas de alegria e emoção! Que prazer e boa surpresa conhecê-la, minha bisneta!... Marina... Tão lindo nome!... Se não me engano, quer dizer “Aquela que veio do mar”... E um mar que deve lá ter seus navios negreiros, já que luta por uma sociedade mais justa às mulheres, não é?

... Você devia ler Castro Alves, meu poeta preferido...

Só uma coisinha, antes que me falhe a memória... Será que cabe um oratório no quarto que vou morar, na sua casa? Porque meu rosário teima em cair da cabeceira da cama... E como tenho a coluna torta por uma surra de cinta que levei de papai, quando eu tinha nove anos...

Danilo Rodrigues de Castro
Enviado por Danilo Rodrigues de Castro em 10/10/2016
Código do texto: T5787441
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