UM CERTO "ESTADO"

Às vezes eu me pergunto como um “estado” que possui uma polícia tão despreparada para agir, com tantos homens obesos e desfigurados, equilibrando-se por trás de abdômens globosos e gigantes, talvez cheios de vermes, pode oferecer segurança a uma sociedade pisoteada pela violência. Não sei se sonhei, mas parece que já ouvi falar que nessa mesma polícia, dentro do seu quadro de efetivos, foram presos inúmeros bandidos, ainda fardados e com a mão na botija alheia.

Disseram-me que nesse mesmo “estado” há um montão de funcionários que, apesar de públicos, operam em causa própria, vivem sonolentos na ociosidade que lhes oferece a mediocridade que escolheram para gastar seus dias, de forma miseravelmente improdutiva. Sonham em aposentar-se, garantir seus salários definitivamente e tomar banho de mar nas praias belas que esse mesmo “estado” tem.

Não sei bem se é verdade, afinal não me lembro da fonte que me informou, ou se sonhei, que um certo fisco está comprometido com as mazelas da corrupção; nem todos eles, mas a sua maioria. Reduto de vícios obscenos, falcatruas costuradas à luz do dia, nas barbas dos contribuintes que ainda honram seus compromissos com o erário público. São os lobos maus, caça-níqueis, impostores graciosos que nem se lembram de que são pagos pela sociedade para arrecadarem impostos e pô-los nos cofres públicos. Leram talvez no Aurélio que “cofre público” é sinônimo de “próprio bolso”.

Eu tomava um cafezinho pingado no tamborete de um bar na orla marítima e me deparei com a fala indagadora de um turista do sul. Perguntou-me sobre o que faltava aos dirigentes desse estado para que fosse feita a infra-estrutura da capital. Nada pude responder-lhe: era vergonha na cara! Meu silêncio entristecido disse tudo. Minha repulsa obrigou-me a tremer o espírito frente ao jovem turista que nos visitava pela primeira vez: encantado com a terra e desencantado com os outros.

Ao sair dali, ouvi um grito forte: era da saúde. Urrava clamando pelos ventos da prevenção. Lembrei-me de que as doenças que mais matam nossas criancinhas advêm da fome e da sujeira. Que “estado” seboso, guardião de porcos e de miseráveis, saúde suína, erguido pelo descaso assassino de tantos! A mortalidade infantil assusta. A fome parece brotar dos poros da terra financiada pela falta de planejamento de cegos.

Dormi cansado. Recordo-me de um pesadelo que tive. A justiça seqüestrou algumas esperanças oníricas. Nele, alguém fez-me perguntar se era justo que os presídios não estivessem ocupados também por ladrões que passeavam sorridentes nas ruas e becos das cidades. A lei não era para todos; morria de amores por alguns. Era inclemente e impiedosa para os pretos e pobres. Suas garras afiadíssimas adoravam dinheiro e poder.

Ouvi falar que nesse “estado” existem doutores da lei que metem medo até no diabo. São ricos e viciados nos desmandos e nas incongruências do poder que lhes foi conferido um dia. Que pena, quando deveriam ser eles a olharem por nós! Há tribunais que repartem o que nunca deviam ao menos pensar em ter e receber. As togas parecem doces saborosos a satisfazerem o apetite de bolsos ávidos. São tão poucos os doutos e probos entre esses, mas existem, sim.

As eleições, essas sabem eleger o disfarce e as fortunas de bocas tortas. São os anjos do inferno. Fazem tempestade para, na desgraça alheia, financiar a reconstrução dos escombros. Pobres homens desalmados! Merecem a nossa compaixão. Suas razões voaram com o vento, escondendo-se envergonhadas dos seus atos. Nas entrelinhas do que pensam, vê-se a escuridão hedionda e perigosa que sufoca e mata a cidadania dos que os escolheram.

Esse “estado” retrógrado, cheio de parasitas esfomeados continua a sobreviver. Tornou-se obsoleto e triste. Parado, vê o bonde passar rápido; mesmo estirando as mãos, não mais o alcança.

Devo dar um leito aconchegante a esse pobre “estado”, passar bálsamo em suas escaras e orar por ele e por seus impostores. Vou deixá-lo dormir profundo e pomposamente, recostado nas penugens do seu lodo. Talvez sonhando, quem sabe, faça ele alguma coisa por nós, sonhadores de cá, personagens dessa ficção tão verossímel. Vou apagar as luzes, fechar a cortina, fechar os olhos, dormir e fingir que acordarei. É melhor trilhar nos caminhos do sono do que ficar diante do olhar medíocre de seus governantes.

Quando quis dormir, mandaram-me ter cuidado. Chovia forte, as ruas alagaram-se rapidamente e tive que regaçar as mangas para desentupir os bueiros públicos e laçar corpos na correnteza das águas da chuva. O trânsito parou, helicópteros barulhentos transportavam ratazanas que, trazidas do inferno do poder, observavam do alto a miséria e o sofrimento alheios. Antes que pudesse deitar e dormir, tive que suportar acordado esse terrível pesadelo e só aí pude crer que esse “estado” era um Estado mesmo, com nome e geografia próprios. Eu é que era o sonhador descrente que via o que jamais poderia ser ao menos cogitado em pensamento.

Tomara que eu consiga dormir e sonhar com o céu e orar no silêncio da esperança de ver as cortinas se abrirem para um novo tempo fiel às leis e às nossas vontades. Há um certo oriente frondoso que nos aguarda. Não sei quando o alcançaremos, mas haveremos de chegar a ele. Não há noite que não haja sido precedida por algum dia. Os que latem alto parem ou diminuam a voz, pois os sonhadores estão cansados por não poderem dormir e sonhar com as coisas boas que um Estado pode dar.