Você em uma prece

O corajoso menino cospe-fogo serpenteia por entre os carros depois do show. As moedas que reverberam no fundo do seu boné encardido são inversamente proporcionais aos sorrisos de boca inteira.

Rezo diariamente para o menino que teima em brincar com chamas e age como se correr por entre os carros à procura de acalento, fosse tão simples quanto o sorvete de casquinha vendido na barraquinha do outro lado da rua.

Penso em como seria se você soubesse o quanto vale ser você. E se surpreenderia com as bobagens disfarçadas de verdades que tanto cultiva nas entrelinhas das sinapses de sentimentos, justificados pelo corriqueiro choro que brota nos momentos mais óbvios.

Não somos muito mais do que chamas abafadas rapidamente pelo sinal de trânsito que abre sempre no momento mais importante, seja lá qual for. Para o menino, é quando se está colhendo moedas. Para você, é quando não está olhando para mais nada além de si mesmo.

Rezo por nós em uma oração à meia-voz e espero que nossas almas saibam ouvir. Rezo em pé, porque de joelhos sou menor que minhas palavras e muito, muito menor que você. Rogo para o santinho amassado que carrego na carteira, pedindo para que nos tornemos tão bons quanto éramos enquanto crianças, quando o mundo cabia em nossos desenhos preferidos e nossos pais eram herois imortais.

Sonhei com a felicidade um dia desses. Sonhei e imaginei que poderia voltar no tempo em que em só existiam garrafas de refrigerante de vidro e o gosto do chiclete durava mais. Lembra-se de quando corríamos no recreio e não tínhamos vergonha de nossos joelhos esfolados?

Você se lembra de quando se doava por inteiro e com toda a sinceridade que seus olhos meio amargos eram capazes de suportar, rezando para que a vida adulta nos trouxesse tudo àquilo que a propaganda de natal vendia no horário nobre?

Sei que frases mal ditas matam mais que atropelamento. Matam tudo o que há por dentro e queimam tanto quanto as chamas do menino cospe-fogo que, vez por outra, se mete a malabarista. Mas a vida é mesmo uma sequência de piruetas, ou seja lá o que for preciso fazer para sobreviver.

Desenho seus contornos em papel de seda. Traços bem tênues, quase transparentes. Só assim você fica mais leve, e é assim que você fica mais vivo. Tento suavizar você. Amolecer seus ossos rígidos e talvez quem sabe, preencher os sulcos do seu rosto ríspido.

Espero que você não tenha se esquecido do cheiro de pão fresco, do azedo da carambola verde, do amarelo dos meus cabelos e do gosto intragável do café frio. Em uma oração à meia-voz, eu rezo por nós. Rezo e espero que nossos corações percam o juízo. Rezo sentada, porque de joelhos não consigo me fazer ouvir, e em pé já estou do tamanho de minhas palavras e quase, quase do seu tamanho.

Você está em todas as preces feitas em silêncio no canto mais escuro do quarto da vez. Está nos marcadores dos livros que não terminou e nas cartas escritas de próprio punho com uma letra que já não reconhece mais.

Ficarei de joelhos se você pedir. Vou me pendurar na beirada de sua cama para que meus olhos fiquem na altura de seu rosto adormecido. E só assim você ouvirá minhas palavras, porque quando está de pé, você fica maior do que seus próprios sonhos e se esquece de que pode realizá-los, e quando está sentado, você se sente tão pequeno que nem mesmo se permite sonhar.

Em uma prece silenciosa, arquiteto as palavras em rima e gasto todo meu vocabulário em pensamentos muitos. E é assim que aceitaremos ser do tamanho de nossos sentimentos mais legítimos, como quando éramos crianças e costumávamos acreditar que herois dormiam no quarto ao lado.