TONICA BASTIÃO
Tonica Bastião, nome de batismo: Antônia de Fátima da Silva, sua criada! Costumava dizer, sempre que alguém a indagava. Apelido de casa: Tonica. Depois do casamento, Tonica Bastião. Herdara do falecido marido, o “Bastião” – forma sincopada do nome Sebastião, que de herança, logrou-lhe a alcunha, um reles casebre num bairro da periferia e, de lambuja, uma reca de filhos.
Mulher-macho sim senhor, num bom sentido, é claro. Tonica logo cedo enviuvou, viu-se praticamente sozinha, não fosse a miuçalha da prole. No mato sem cachorro, como se diz, visto que o marido (falecido), caranguejeiro de profissão, ou pescador do crustáceo, empacotara, vítima de cirrose hepática. Pois fora a garanhice em fecundar filhos, nove, mais um no bucho de Tonica, era um verdadeiro pé-de-cana, o que lhe causou morte prematura, ainda que só tivesse trinta anos de idade.
Tonica Bastião a se ver sozinha, o que em certo ponto foi um alívio, pois o dito cujo, na maioria do tempo bebum, a maltratava, e aos filhos, chegando às vezes a bater neles. Ruim com ele, pior sem ele. Bastião, de vida desregrada, totalmente irresponsável, não deixou à família qualquer espécie de lenitivo, seguro, pensão, aposentadoria, nada... Trabalhava avulso, sem registro.
Tonica não se fez de rogada. Arregaçou as mangas, faxina, lavagem de roupa e o que mais aparecesse, tava no eito. Não deixava escapar qualquer oportunidade de ganhar uns trocados. Tudo que ganhava era para o sustento dos filhos. Apadrinhou-se de um chefe político que, com dó, ou até mesmo por que viu que era “pau pra toda obra”, acolheu-a em sua cozinha. Ocasionalmente a ajudava com remédio, deixando levar para casa, no final do expediente, sobra de comida, o que era muito bem aceito pela molecada faminta. O tempo foi passando, e Tonica Bastião, em agradecimento, tornou-se uma espécie de cabo-eleitoral. Na época de eleições, era requisitada para campanha.
Agora, já com seus cinquenta anos, Tonica, em detrimento de tanto sofrimento, considerava-se vitoriosa. Batia nos peitos e gabava-se: – Sofri muito nesta vida desgraçada, mas estou vencendo com a graça de Deus em primeiro lugar, e, depois, com a ajuda do meu querido Dr. Barbosa (chefe político), pelo qual Tonica tinha verdadeira adoração, fidelidade canina.
Nesse meio tempo, Tonica transformou-se num fortíssimo cabo eleitoral. Isto por que, nessa profissão, cabo é o último posto. Não fosse assim, ela seria coronel, ou o maior posto do escalão. Era fanática, brigava, se fosse o caso, na porrada mesmo. Esculhambava com nomes feios e pornografias, praguejava quem ousasse falar mal do seu querido e adorado chefinho. Para ela, era Deus no céu, e Dr.Barbosa na terra.
A família estava criada, embora Tonica morasse na mesma casa, agora já cheia de netos. Tonica fazia questão de manter todos unidos, “panela que come um, come dez”. Ainda mais que, agora, dos filhos alguns já trabalhavam e a renda era maior. Todos iam vivendo. Tonica agora tinha outra paixão na vida: era a política. Ganhara confiança do partido (chefe político). Ela gostava de dizer com orgulho: – Sou de dentro da casa, entro e saio sem pedir licença. Nesse ponto, Tonica tinha razão. Tinha liberdade, trânsito livre, pois era de uma fidelidade a toda prova. Dava a vida se fosse o caso, mas não aceitava ninguém falar mal da família Barbosa: - Ai, isso é que não! Gente boa tava ali, honestos, caridosos, trabalhadores... E não poupava adjetivos elogiosos. Em suma, era o que se chama de “babão de carteirinha” ou seria babona? Mas é desse tipo de gente que político gosta. Custa barato, é de confiança, mais fiel do que um cão vira-lata, além de fazer o que mandarem, seja o que fosse, sem reclamar ou contestar.
Tonica agora beirava quase os oitenta, mas continuava com a mesma fortaleza, principalmente quando o assunto era política. Estava obesa, com quase noventa quilos, os olhos encovados, o nariz adunco, agora a velhice dava-lhe a aparência de uma coruja velha. A língua ferina: “escreveu não leu, o pau comeu”. Tome pragas, nomes feios, etc. Analfabeta de pai e mãe, o que nunca a impediu de votar (nem a ninguém no Brasil), decorava o número do candidato, levava o santinho dentro do corpete, dava um jeito.
Mais uma campanha, e lá estava Tonica Bastião, chefiando suas equipes nos comitês, acompanhando o candidato nas caminhadas, nos comícios, entre um discurso e outro, limpando-lhe o suor da testa com o lenço, que depois guardava como troféu. Tonica vibrava, fazia paródias, subia no palco, dava depoimentos, batia e apanhava (fazia parte). O candidato aprovava, o povo delirava.
Desta vez, a eleição para Tonica tinha um “quê” especial. Primeiro a vitória do Dr. Barbosinha, bem como, também seria a primeira vez que ela votaria na tal urna eletrônica; já pensou a tecnologia aonde chegou, que coisa mais moderna? Tonica vibrava. Até que chegou o dia. Dia de eleição para Tonica, era dia de festa. Praticamente não dormiu, na agitação da campanha. Logo cedo tomou um banho, vestiu seu vestido novo, feito próprio para a ocasião. Colocou seus pós, rouge, batom, perfume, brincos etc., e assim, super- produzida, lá foi Tonica Bastião, votar. Antes, a tradicional e sagrada passada na casa do candidato. Tudo certo! A vitória era inevitável. Alguém pergunta: -Aí, Tonica, não tem perigo de errar? – Qual o quê? Safa! Treinei um bocadão na urna do chefinho, além do que, esse ano é permitido levar o santinho com o número do candidato, veja... (e, abrindo a mão direita, enroladinho bem no centro, estava o papel).
Partiu Tonica, firme e decidida para a 23ª seção – Sindicato dos Trabalhadores Rurais – onde é lotada. Ao chegar, toma o seu lugar na fila. Como é muito conhecida, cumprimenta alguns. Sorrisos para os partidários, rabanadas para a oposição.
Tonica sente-se nervosa. O que será? Estava suando frio, devia ser o estresse da campanha, era isso. A fila andava... Tonica aperta na mão o santinho. Não pode errar. Chega sua vez, o nervosismo aumenta, o suor empapa e escorre no pescoço gordo de Tonica. – Seu nome completo. – Antônia de Fátima da Silva. – Um minuto. O mesário olha a lista, uma eternidade. Tonica reza baixinho. O mesário pergunta: - A senhora está passando bem? Tonica responde: - Estou. É apenas o calor. – Pronto! Pode ir pra urna! Tonica caminha, mas parece que a urna está a uma légua e, no entanto, são apenas três metros. Tonica, mesmo assim, consegue a todo esforço chegar à bendita urna. Ali está ela, chegou o tão esperado momento. Tonica tenta abrir a mão, não consegue. Os nervos não obedecem. Não! Não é possível, pensa Tonica. A visão vai ficando turva, as pernas não aguentam o peso do corpanzil, e Tonica despenca, caindo por cima da urna. O barulho, o corre-corre. – O que foi? Que aconteceu? – Corram! Acudam! Chamem um médico, uma ambulância! Esta mulher está tendo um ataque. Todo mundo falava, corria, gritava. Um verdadeiro pandemônio.
Levaram-na para o hospital. Os médicos tentam fazê-la voltar à vida. Inútil. Ataque cardíaco fulminante. Choro e lamentação. A família, os companheiros de campanha. O funeral é providenciado: caixão, mortalha, etc. Só na hora de vestir a defunta, é que alguém nota. – A mão direita de Tonica está fechada, a outra está normal, e agora? Tentam abri-la, os dedos estão duros, parecem de ferro, ninguém consegue. Chamam um padre. O reverendo tenta, reza. Nada! Alguém lembra: - Só tem um jeito, tragam o Dr. Barbosinha (o candidato). – Nossa! Onde achar o candidato, logo agora, dia da eleição? Deve está super- ocupado, mas... é para Tonica Bastião, fiel, abnegada, cabo eleitoral dedicada.
Até que enfim, acham o candidato: - Dr. Barbosinha, o Sr. precisa vir (contam-lhe a história). – Mais essa agora! Eu aqui arrancando os cabelos, e esse diabo de mulher me vem morrer, isso é hora!? Porque não deixou pra morrer depois da vitória? Ao menos ela votou, antes de empacotar? – Pois é! Por isso é que o Sr. precisa vir. A mão da defunta não abre nem por decreto, e dentro é que está o segredo. Achamos que só o senhor pode resolver. – É! Se não tem jeito, vamos, mas apenas alguns minutos. Não posso perder tempo!
Tonica estirada na cama, velas acesas, choro. Chega o Dr. Barbosinha, entra no quarto, silêncio total. - Qual é a mão? (indaga) – A direita. Dr. Barbosinha fica meio indeciso, mas lembrando que o tempo é ouro, diz: - Bem, vamos ver. Pega na mão da defunta e, para surpresa de todos, à proporção que vai pegando, os dedos vão abrindo um a um. Todo mundo chega mais perto, fixam os olhares. Bem no meio da mão da defunta, está o papelzinho enrolado. Dr. Barbosinha pega o papel, e o desenrola lentamente, ali está o santinho com seu retrato, e no verso o número eleitoral. – Nossa! Nem o padre conseguiu. Isso é coisa do capeta! – Qual nada, é um aviso que vamos perder a eleição. – Eu acho que é um aviso que vamos é ganhar! – Psiu! Silêncio (diz Barbosinha). - Não quero que se comente nada, pelo menos até que passe a eleição, pois tenho certeza que esta santa que aqui está, deu a sua vida... (e fez um discurso emocionado, fazendo chorar os presentes), logo em seguida deu certa quantia à família, para ajuda nas despesas fúnebres. Quando já estava no carro, a sós com o motorista, desabafou: - O que não se faz para ganhar uma eleição, até defunto, a gente tem que bajular. Só tenho pena de uma coisa! – O que? (pergunta o motorista). – Que aquela desgraçada tenha morrido antes de votar.
Ignácio Santos