Um duro ano , 1963.

No ano de 1963 eu estava com nove anos, fazia apenas um ano que estávamos no Brasil, e ainda em condições precárias, e o meu pai alugara uma casa que ficava sobre um armazém de farelos, parecia ração para gado, e a casa toda tinha aquele cheiro em tempo integral, até que chegou um dia em que deixamos de perceber.

Quase não tínhamos mobília, e me destinaram a dormir sozinho em uma ampla sala , na ponta do corredor, onde havia só um sofá verde, e nada mais, uma sala de tacos, com paredes irregulares, e duas janelas sem cortinas, onde via as luzes dos veículos formando sombras que subiam ao teto. No início cobria a cabeça de medo, encolhido até o dia amanhecer , quando me trocava e ia para a escola, que era longe.

Nessa sala eu e meu irmão jogávamos futebol, afastávamos o sofá para um canto e o jogo corria solto, pois os farelos do andar inferior não reclamavam da nossa correria, as vezes aparecia um caminhão o outro que víamos pelo quartinho do fundo ,uma espécie de depósito de bebidas , muitas garrafas velhas e empoeiradas, um lugar afastado com uma janelinha basculante onde observávamos os carregadores , que em silêncio ensacavam o farelo, uma montanha enorme e amarelada tomava conta daquele armazém, e sempre me imaginava afundando nela , me fazendo percorrer um frio pela espinha.

O meu irmão dormia na única cama de solteiro, num pequeno dormitório ao lado do quarto de casal, com o pequeno armário, a explicação que a minha mãe me dava era sempre a mesma, de que meu irmão reclamava , que era mais difícil e etc...e que precisava ficar perto, então fui aprendendo o significado da palavra conformismo desde muito cedo, e assim foi para tudo. Em parte foi uma coisa boa , pois fui aprendendo a viver livre e solto, e a me defender.

Era eu quem ia à venda, que era uma boa "pernada" para alguém da minha idade, sobre tudo na volta, com a sacola já cheia, mas aprendera a não reclamar, e entendi o quanto a minha mãe se apoiava em mim, pois às vezes me segurava na cozinha e falava , falava...viajava nas recordações, que eu escutava pacientemente, entendendo precocemente que ela precisava desabafar, e às vezes também chorar.

Um dia ela me disse que eu seria um bom marido, e lhe perguntei do porque, dizendo que eu só tinha nove anos, como poderia ela saber (?). E ela me respondeu : " As mães sempre sabem dessas coisas". E eu lhe perguntei sobre o meu irmão, no que ela só me respondeu : " Eu ainda não sei , só o tempo me dirá ".

Aquilo ficou gravado a fogo na minha alma, e acho que foi um dos elogios mais lindos que alguém já me fez.

Aragón Guerrero
Enviado por Aragón Guerrero em 24/09/2016
Reeditado em 24/09/2016
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