O Corpo - crônicas provincianas
Dona Maria das Dores estava muito mal. Do alto de seus oitenta e oito anos, já passara por inúmeros médicos da região sem nenhuma melhora. - Problemas de coração bastante graves, - vaticinou o doutor quando a encaminhou para a capital. Miudinha, encarquilhada e com a respiração muito difícil, a família já não esperava recuperação, estava desenganada. Já estava internada há quinze dias e uma prima de terceiro grau se encarregava de passar diariamente no hospital e mandar notícias da saúde da velha senhora. Antônio das Dores, seu filho, estava num boteco comendo água ( expressão regional curiosamente com significado de ingerir qualquer bebida, exceto agua) com o prefeito quando veio a notícia do falecimento. Pela tristeza ou pela bebida, não importa, ambos choraram. O prefeito solidário, compassivo e alcoolizado, resolveu tudo num repente.
- Vou mandar buscar o corpo agora mesmo. Você não se preocupe Toninho, pode fazer os preparativos que amanhã mesmo o corpo estará chegando com a ambulância da saúde.
Algumas horas depois sai o motorista em direção a capital com ambulância transportando um esquife vazio. Claudionor, motorista experiente e arrojado, nordestino negro arretado, não se intimida com vivos, muito menos com defuntos. Segue a viagem sem incidentes, com a procuração do filho, recebe o cadáver no hospital e retorna nos seus passos. Já se passaram quase vinte quatro horas quando, a pouca distância de seu destino de volta, cerca de cinquenta quilômetros, é barrado no posto da polícia federal. Eram duas da tarde e o calor insuportável.
O policial enorme, imponente em sua jaqueta de couro, rodeia o carro examinando-o, confere os documentos do carro e habilitação de Claudionor. Abre e fecha rapidamente a porta traseira do furgão ambulância, pois o odor já começara a se espalhar pelo ambiente.
- E os documentos referentes ao transporte?
- Já mostrei doutor, o atestado de óbito...
- Não, quero os documentos para transporte do cadáver. São os seguintes: Petição de fiscalização e liberação sanitária para o translado, segundo regulamentação da ANVISA. Identificação do cadáver ou dos restos mortais sob translado, expedida pelo órgão de segurança pública ou outro legalmente equivalente. Certidão de Óbito expedido por Cartório de Registro Civil, em duas vias, original e cópia, ou cópia autenticada, a qual ficará retida. Identificação do requerente do translado em duas vias, original e cópia, ou cópia autenticada, a qual ficará retida. Autorização para remoção do cadáver e partes deste expedida pelo órgão de segurança pública local. Ata de Procedimento de conservação do cadáver ou de partes deste, supervisionada e de responsabilidade de profissional médico, que subscreverá a competente ata, em conjunto com o técnico que a realizou. Declaração de Responsabilidade no translado emitida pela empresa transportadora, em duas vias, original e cópia, ou cópia autenticada, a qual ficará retida. Mexendo em sua prancheta retira a folha. – Aqui está. - Entregando na mão do atônito Claudionor a lista que acabou de citar.
Claudionor olhava para o reles atestado de óbito em sua mão e para a enorme lista e olhava para o policial pensando em como resolver a questão.
- Quer dizer que não posso passar daqui com o cadáver?
- Sem esses documentos não, - responde o policial.
Pela primeira vez Claudionor ficou sem palavras e sem ação. Mas por pouco tempo.
– Realmente não tenho outra solução. Tome doutor – atirando a chave para o espantado agente rodoviário. Ato continuo, atravessa a rodovia e começa a fazer sinal de carona aos carros que passam, seguido pelo enorme agente da lei.
- O senhor não pode deixar o carro aqui, - grunhiu entre os dentes.
- Mas doutor, não tenho dinheiro para comprar combustível para voltar, então, deixo o carro aqui e vou até meu chefe, o prefeito, para resolver a questão.
O policial até então calmo e se divertindo com a dificuldade do motorista, agora imaginando o odor e o calor, começa a se irritar, sua face macilenta começa a enrubescer.
- Tome a chave e pode ir, - sucumbe diante da situação.
- Não doutor, não quero fazer nada errado. Vou pegar uma carona, e com o jurídico da prefeitura resolvemos tudo dentro da lei.
Com a face pletórica, bufando, o federal bradou: - pegue essa chave e vá embora, AGORA. Ou você vai preso.
Reconhecendo ter atingindo o limite, Claudionor agradece o policial e retorna ao carro, sorrindo interiormente.
Chegando em Baixa da Ribeira, entrega o ataúde na casa de Toninho que agradece o transporte e pergunta se tudo foi bem na viagem.
- Tudo tranquilo seu Toninho, ninguém reclamou da viagem.