O CIRCO DO ASFALTO

-Respeitável público!

E mais uma vez nada de novo no tema.

A nossa crônica, então, fluiria ali, a olhos vistos das ruas , mais uma vez no protagonista semáforo do cruzamento, sob um meio dia invernal a correr sufocado pelo tempo; o perene teatro da cidade grande, hoje em nada tão acolhedora quanto cantada em passados versos alvissareiros.

Ninguém percebeu, mas ali éramos dois anônimos artistas da vida.

Ambos tínhamos pressa em passar pelas fechaduras que se intercalam aos êxitos do duro asfalto e senti que nossa diferença era apenas uma, o fato de que nossas cores de passagem se distinguiam apenas no tom dos sentidos, a se dissiparem no anacronismo dum semáforo totalmente cego às vidas que seguem despercebidas...sempre a pedir passagem.

Anacronismo de cores: eu a esperar pelo verde se abrir no nosso idêntico cruzamento de cena e ele a comemorar a sorte dum vermelho ali quebrado, parado há tempos, a emperrar o trânsito cada vez mais caótico, a nos permitir uma breve parada para a intersecção das vidas por aquele nosso instantâneo palco.

A estridente sonoplastia cacofônica soava numa orquestra de buzinas desafinadas e a fumaça preta nublava a cena do nosso circo de seres igualmente asfálticos.

E ele, por ofício, a purificar a atmosfera com alegria.

Eu me solidarizava conosco, ambos atores, plateias e palcos de nós mesmos.

Eu, a agarrar um volante, qual se norteia um timão ao desconhecido e ele a equilibrar três bolinhas coloridas que manobrava tão rapidamente com as mãos, qual tenros dedos de criança encantada, numa arte de coordenação motora de fazer inveja ao melhor dos maestros malabaristas da vida.

Ao lhe enxergar meio ao longe, não delineei com precisão as minudências da sua face bem maquiada, mas o percebi de estatura mediana de porte ágil, todavia, entremeado por lapsos algo cambaleantes; vestia uma roupa luxuosa que destoava das dos artistas das nossas ruas, em tons vermelhos e amarelos, com inúmeros pompons dourados desde a roxa peruca farta até aos seus pés gigantes , que refletiam a luz dum sol tênue a terminar em seus sapatos bem compridos, verdes com nuanças de prata escurecida, e cujos bicos incisivos cravavam no asfalto duro as cenas que, com delicadeza, acendiam as minhas retinas.

Percebi que de longe me fitava debochado a comigo se comunicar numa linguagem facial que me roubou um sorriso.

Claríssimo, precisamos aprender a debochar de nós mesmos...foi a sua lição maior.

Eu pensei comigo que, obviamente, antes de estar ali nas ruas, já havia passado por alguma escola circense de ponta, sob professores que lhe tivessem lapidado o dom tão belo que já tinha por ofício, o de arrancar sorrisos até das pedras...

De repente, algo "pareticamente" manco pelo seu lado esquerdo, se aproximou de mim para um agrado que lhe recompensasse a bela arte pela asfáltica vida.

Baixei o vidro do carro e interagimos.

Foi ali que pude perceber que se tratava dum artista sofrido cujos sulcos profundos na face lhe marcavam seu tempo pela já avançada terceira idade.

“O senhor me desculpe, estou sem nada no momento, venho do trabalho também”-lhe disse eu meio sem jeito, a continuar:

“o senhor deve ser profissional de alguma importante instituição circence , porque maneja tão bem suas bolinhas, um encanto, decerto que trabalha em algum outro lugar.”- lhe indaguei numa frase afirmativa.

E ele, num espanhol bem carregado em fala disfásica e nitidamente já me desculpando com o olhar gozador por não lhe pagar pelo seu suor de me alegrar, assim me falou:

“sí,si , yo soy un artista de la vida! Yo nací en Madrid, pero desde la infancia soy payaso del mundo!”.

E continuou, todo orgulhoso, em meio à minha surpresa ao último ato daquelas nossas cenas asfálticas:

“ A, sí, yo tambíén trabajo en la Faria Lima e en la Avenida Paulista”. “Vaya con Dios!”...me disse ele em carinhoso sotaque.

“Sí, vaya con Dios"!-também lhe desejei em pensamento.

E assim, fechamos nossas cortinas desta nossa crônica terminada ali, mas eu sei, a continuar pelos mistérios do asfalto do nosso todo sempre tão desconhecido, e por sorte das vezes, asfalticamente engraçado.