Diário de Sonhos - #103: Neve
Quebrei o pé de novo. O mesmo pé, o mesmo osso, a mesma fratura que ano passado resultou numa embolia pulmonar, que quase me matou e que fez minha vida perder o controle desde então. Problemas respiratórios, problemas cardíacos, esporão, joelhos, articulações, intestino, fígado, problemas vasculares, vértebras do pescoço, coluna, labirintite, perda de audição, zumbido, depressão... Parece que minha vida está desabando desde então. Faz duas semanas mais ou menos. Eu tinha acabado de sair de minhas férias. Faço aqui um parênteses. Foram férias boas. Fiquei em casa e não viajei. Mas fiz as pazes com minha mente e meu corpo um pouco. Parei de temer a noite e a solidão (coisas que eu amo e me foram arrancadas pela depressão pós-traumática). Consegui fazer várias coisas que não fazia há tempos, dentre elas dormir bem. Desde o problema do ano passado eu nunca mais consegui ter uma boa noite de sono. Bom, achei que tinha feito as pazes. Assim que voltei a trabalhar fui com amigos num rock bar. Dancei. Então deus, ou buda, ou seja lá qual for o nome da entidade que se delicia com meu sofrimento acho que seria divertido me fazer quebrar o osso no mesmíssimo lugar. Tão logo a dor começou eu soube que era a mesma dor de antes. No mesmo instante todas as lembranças ruins que eu custei a esquecer desabaram sobre mim...
Estou há duas semanas lutando contra este inferno renascido em mim, há duas semanas sem paz, há duas semanas sem conseguir dormir direito. Ainda que eu esteja melhor preparado desta vez, tomando os cuidados necessário pra não ter outra embolia pulmonar, ainda assim é quase como passar por tudo aquilo de novo. Hoje eu tive um belo sonho, uma bela noite de sono. E dentro do sonho um mistério.
Eu sonhei...
Sonhei que estava numa excursão com meus antigos colegas de escola e também alguns colegas de trabalho. Estávamos num ônibus. Fazia muito frio e ninguém queria abrir as janelas, então elas ficaram embaçadas a ponto de não conseguir enxergar nada lá fora. O ônibus para e o motorista diz que chegamos. Alguém sai e volta logo em seguida, com um sorriso no rosto. "Você vai amar isso aqui!", diz pra mim. Todo mundo desce correndo. Eu vou atrás. O que é que vou amar. Quando finalmente saio não acredito no que vejo. Neve. Estamos no meio de uma cidade completamente coberta por neve. Neve nas ruas, neve nas calçadas, neve nas árvores e plantas, neve sobre os prédios, como se um gigantesco manto branco e puro tivesse sido derramado sobre toda a paisagem. Primeiro fico paralisado, lágrimas saem de meus olhos, não acreditando no que vejo. Então um sorriso como eu nunca dei rasga através de minha face. É tanta felicidade que não me contenho, pulo, festejo, danço, abraço meus amigos e todos comemoramos a neve.
Saímos desbravando a cidade. É pequena, poucos prédios, meio isolada, como se fosse uma cidade do interior. Alguém diz que estamos no Canadá. Fico ainda mais feliz. É tanta felicidade que não cabe no peito. PLOFT! Sinto algo gelado me atingir com força e ouço risadas. Alguém fez uma bola de neve e jogou em mim. Posso sentir como se fosse água gelada em minha cara. Meus amigos saem correndo, fazendo bolas de neve e atirando uns aos outros. Resolvo fazer o mesmo. Pego um punhado de neve em minha mão e por um momento fico parado sentindo a neve em minhas mãos. Parece terra, só que mais dura e muito mais fria. É uma sensação deliciosa. Miro em alguém que está desatento e acerto. Passamos o dia todo brincando disso.
Já começa a entardecer e alguém dá a ideia de procurarmos algum lugar com mais obstáculos e formamos dois times, como um paintball. Alguém diz que achou um terreno de construção que é perfeito pra isso. Sigo meus amigos mas acabo errando o caminho e entro num terreno vizinho. Vazio e abandonado. De repente tudo fica sombrio e triste. Sob um montinho de terra vejo uma espécie de portal feito com galhos de madeira podre e retorcidos. É uma construção feia que me enche de medo. Parece um lugar para rituais de culto ao diabo ou algo assim. É pavoroso e saio dali. Vou no terreno vizinho e passo o resto da tarde brincando com meus amigos na neve.
Acordei muito contente, pois este sonho foi o mais próximo que cheguei de realizar meu sonho de ver a neve de perto. Mas também acordei um pouco assustado com a visão do portal em meu sonho. Refleti por um tempo e pensei. Muitos de meus sonhos têm essas coisas de demônio, diabo, inferno e coisas do tipo. E olha que eu nem ligo tanto pra essas coisas. Não sou cristão, nem ateu. Sou agnóstico. A imagem do demônio me soa muito mais como uma explicação mitológica para a maldade dos homens do que como uma entidade que vive do sofrimento. Essas coisas me assustam. Queria um dia poder ter sonhos normais como todo mundo. Não viver só de pesadelos, acordado ou dormindo.
São Paulo, vinte de setembro de dois mil e dezesseis.