JA ME PERDI NOVAMENTE

Cruzo cruzamentos onde o ultimo a ter preferencia é quem passa andando. Então cruzo como na cruzada, atravesso a encruzilhada. Passo atento às flores pra um dia ter coragem de fotografa-las, mas isso só não basta: atento também ao jardineiro que fez mais pelo meu dia do que o próprio Presidente. Sigo a microfísica humana, onde nesse dia frio, a redução do desconforto de existir é mais importante que qualquer tratado universalizante. Isso que importa. Até porque pensava vacilante pela rua ao quase ser atropelado pelo carro igual ao do meu pai, poderia ser ele, e me pus atento. Pra me ter atento era necessario o jardineiro me colocar em desconforto, ele sempre faz isso! O jardineiro fez mais pelo meu dia que o maquinista do trem. O maquinista seria muito mais necessario se falhasse. Assim não iria trabalhar, e no fim do dia, não diria "pronto, acabei" e em seguida não me questionaria sobre um dia a menos, uma semana menos de vida. O dia teria mais sentido se tivesse no conforto do sofá lendo um livro sem precisar do desconforto do dia frio em que descobri o êxito do maquinista após o quase atropelamento que desconfortavelmente me atentou ao trabalho do jardineiro que fez sentido ao meu dia...

Mera idiossincrasia.

De qualquer forma o trabalho não faria sentido, não há razão de uma mesa com computador e milhares do comandos onde não faço nada mais que o maquinista operando com êxito seu vagão, o próprio maquinista não vê razão nisso e provavelmente o próprio vagão tem mais sentido que sua carga: provavelmente a própria carga - gente - anda pelos vagões sem muito sentido a não ser a direção do vagão que da algum sentido à carga. Uma verdade estranha: nada melhor que um trem pra dar sentido à falta de sentido das pessoas. Na verdade, uma direção delegada à função maquinista. Oh, mera máquina de ossos chamada gente, a máquina das máquinas que precisa de um terceiro para orientar o rumo, ora Deus, ora Buda, ou Jesus ou Maria ou Maquinista...

A dama da noite tem um cheiro tão doce que quando a encontro parece não ter mais nada acontecendo no mundo, assim dizia o jardineiro: não precisa de nada, apenas sol e água. E nós precisamos de tabaco, "macaco praia carro jornal tobogã"- eu acho tudo isso um saco. Nós somos uma bobagem ambulante ao vivo e à cores, ruídos e gestos e encenações. Não me sinto muito a vontade de fotografar flores mas desejo muito faze-lo. As flores posam sem posar, o resultado é sempre um quadro de sucessivo realismo de Caravaggio, mas natural, sem pose, sem a pose de gênero coxas e bundas. As pessoas posam e por isso não as congelo e não eternizo, pois sucessivas de mau grado são, como uma repetiçãoãoão de palavras. As plantas posam pousadas em descanso e virilidade. Mas não quero apenas isso, quero mais, quero ir além das meras recalcadas palavras que jactam na sublime folha de papel. Quero representar tudo que existe e ultrapassar o poente pois se nossos olhos não enxergam nem a envergadura esférica da terra no horizonte, oque mais veria? O jardineiro vai além do firmamento material presente...

Ja me perdi novamente.