E a vida continua.
Na bolsa onde cabia batom, pente, perfume, espelho e alguns trocados,
Quisera ela caber alegrias, pois nos lábios pintados de rubro já não cabe nem um sorriso.
Mais um dia se passou feito sombra de nuvens.
Sobre o negrume da noite passeia o corpo feminil,
Com graça monótona, trajando vestido preto feito os olhos negros.
O mundo decifra os homens?
Homens decifram enigmas econômicos capitais.
Poder - Jogo humano, caractere normal de um instinto predatório.
E o enigma humano de sua trajetória, cientistas tentam descobrir.
O que essa moça quer?
A beira da mesa de bar; drink purpura feito sangue, escorrega pela garganta seca e arde internamente.
O que essa moça busca?
A meia-noite passa rápida, graciosa feito giro de bailarina.
A moça perambula pela rua.
Lágrimas negras de delineador preto – Cálice de líquido humano a escorrer pela face cansada.
Na valsa da vida tropeçara no passo.
Ela não soube interpretar o simples papel de ser humana.
O teatro não é seu forte.
Pensou ter perdido a batalha, mas descobriu que havia perdido a guerra há tempos.
Perdestes sua força de vontade, cansou de tentar e fracassar.
Perdera fé na vida, perdera seu emprego, não pagou o aluguel, perdera seu noivo. Perdera o jogo.
Táxi parado...
Ruas escuras, cachorros a ladrar, prostitutas e travestis a trabalhar, cantada de malandros, oferta de drogas para comprar.
Apressou o passo, acenou ao motorista do táxi fumando cigarro...
Veloz o automóvel ia...
No fundo um blues antigo, perfeita trilha para sua melancolia,
Silêncio total, apenas quebrado pelo barulho do motor.
Olhos passeando rápido pela paisagem urbana - Suspiro de vida.
Enfado de viver, fraqueza mental e física.
Olhos nas ruas, olhos no volante.
O motorista a olhá-la pelo retrovisor, ela a devolver-lhe o olhar.
Momentos se passaram numa dança silenciosa e ocular.
Pediu para parar.
Pagou a corrida e pelas ruas foi caminhar.
Havia desistido de tudo, não tinha para onde ir.
Parou próxima a uma ponte, do alto um rio de esgoto corria carregando em suas lentas ondas; mobílias, entulhos e animais mortos, em suas águas poluídas pelo homem.
Pensou na morte e nela em sua libertação e alívio do sofrimento que passava.
Havia perdido tudo.
Nada lhe fazia sentido e o único sentido era não mais viver e fingir ser o que não era.
Em não conseguir ser uma artista do palco da vida.
Abriu a bolsa, pegou seu batom vermelho, escreveu algo num pequeno pedaço de papel e o colocou de volta dentro do acessório, jogando-o ao chão.
Subiu nas muretas, abriu os braços como quem espera por um abraço terno, o abraço terno que não veio, e veio o abraço gélido da brisa da madrugada.
Olhou para o rio; olhar frio, perdido como se vagasse em outras terras.
O coração acelerado, vácuo de dor e tristeza, misto de sentimentos frenéticos a lhe envolver, mas não iria desistir. Pela primeira vez em sua inútil vida iria até o fim de alguma coisa.
Olhou para o alto, fitou pela última vez o céu escuro e taciturno daquela noite triste e inclinando-se para frente jogou-se...
Um vortex de lembranças rápidas a engoliu.
Viu sua vida inteira passar em sua mente de forma tão rápida que parecia a velocidade da luz.
Inimaginavelmente sentiu-se em paz.
Seu corpo alcançou as águas poluídas do grande rio urbano.
A água contaminada a fez sufocar e naquele momento desesperador fechou os olhos para sempre, alcançando sua tão sonhada liberdade nos braços da morte.
O mendigo correu para tentar segurar a estranha criatura humana, mas não conseguiu e olhando para baixo, lágrimas desceram de seus olhos escuros, pôs as mãos na cabeça em desespero. “Como uma pessoa pode tirar a própria vida?”
E ali o mendigo esquecido pelo mundo, fez uma pequena prece à alma de uma desconhecida.
E com o sinal da cruz finalizou. Pensou o quanto todos nós humanos somos tão pequenos e mesquinhos, tão mesquinhos que matamos uns aos outros todos os dias com nossas pequenas ações que ferem tanto o coração, a mente, a alma e a pele de nossos semelhantes, e fazemos o mesmo com nós mesmos, sem percebermos.
Num passo para trás esbarrou na pequena bolsa, agachou-se e a abriu, viu alguns objetos, o mendigo maltrapilho que não era analfabeto tentou encontrar sua identidade a qual não achou na bolsa, somente achou um pequeno papel escrito: “Eu só queria ser feliz.”
Lágrimas transbordaram mais uma vez de seus olhos – Líquido palpável de sua humanidade.
Dobrou o papel cuidadosamente após fitá-lo por mais alguns instantes e o guardou no bolso da calça jeans suja e esfarrapada.
Seguiu pela ponte, pensando no que levou a pobre moça a fazer tal coisa. E tentando entendê-la penalizou-se, pois várias vezes pensou em fazer o mesmo, porém sabia que a felicidade é algo que só tem sentido para quem a sente e para si era ter saúde, mas queria ter muito mais que saúde, naquele instante pensando em sua realidade de mendigo, que todos os dias de sua vida era travar uma luta para sobreviver, e ter algo para comer, pensou que sua felicidade naquele instante, era poder ter impedido a moça de ter-se jogado. Mas não se recriminou, se foi assim o que poderia ter feito?
Olhou para o céu e sussurrou para si mesmo: “Felicidade seria se ela percebesse a felicidade de se viver e lutar por seus sonhos”.
Pela neblina densa da madrugada o homem sujo e maltrapilho desapareceu.
E assim mais uma noite se passou, mais uma pessoa morreu e com ela seus sonhos.
Mais uma vez alguém partiu, mais uma vez alguém sofreu,
Mais uma vez querendo ou não a vida continua.