MEMÓRIAS DA ANTIGA LATINIDADE
CATULO, LUCRÉCIO e VERGÍLIO como ponto de partida para a helenofilia dos romanos, ou seja, “inspiração” nos precedentes modelos gregos – imitação ou adaptação? Talvez rompimento dos elos, espécie de cordão umbilical, e agora fusão híbrida. (Nos anais da tevê, “Nada se cria, tudo se copia”, frase clássica do CHACRINHA...)
Ao início do século I a. C., havia antologias de epigramas (poemas breves, muitas vezes satíricos e humoristicos) elegíacos (lamentosos), de amadores, alguns aristocratas romanos em versões literárias para o latim – temas de amor, paixão, sentimentos. Perto de 70 a. C., o poeta grego PARTÊNIO DE NICEIA veio escravo para Roma, ensinou versos alexandrinos, ‘festa’ para muitos jovens poetas, amadores-talentosos-técnicos produzindo para festivais – de lado, entretanto, a épica histórica cheia de mitologia, de Homero ou pós... Valeram a poesia e a comunidade feminina de SAFO DE LESBOS, do século VI a. C. , algum paralelo com os círculos de CATULO e HORÁCIO (este, epicurista, autor da frase “Carpe diem”) – poeta profissional grego produzia épicos, letras para corais, tragédias/comédias para competições públicas, função de ‘professor’ de mitos (pré-história) e história propriamente dita. Bom, em Roma, até a arquitetura grega chegava implantada, também esculturas individuais, passaram a discutir teoria literária, sendo que a oratória já vinha sendo ‘ordem e progresso’.
CATULO – Filho de eminente cidadão de Verona, foi fazer carreira em Roma, mas foi atraído pela literatura. As cortesãs seriam como outras SAFO, mas LÉSBIA (pseudônimo em referência a Safo) era esposa de um cônsul, grande dama, ao mesmo tempo amoral, irresponsável e promíscua, o tema tornou-se lugar-comum na poesia a partir de Catulo – poetas gregos descreviam as incontroláveis paixões como amor nas mulheres, não nos homens – imagine-se a dor de Juno pelas infidelidades de Júpiter... Catulo desejou em poemas que seu caso com Lésbia fosse além de uma paixão, união para toda a vida – depois, ela viúva, porém não era amor para... casamento: juras de amantes não são abençoadas pelos deuses e ele tenta despojar-se do que chama “amaldiçoada e repugnante doença”, choque de sentimentos que repete o conceito grego de “odeio e amo”. Tormento. Catulo parecendo ser dois poetas: a poesia boa da natureza e a má, forçada a inspiração. Lésbia fez dele um poeta ocasional, embora os melhores poemas fossem sobre ela – depois, passa mais a elegias (quase autobiografias de sentimento pessoal) que epigramas. “Peleu e Tétis” é seu mais ambicioso poema, em hexâmetros, temas contrastantes de amor e mitologia, poeta amplo e eclético, linguagem poética de épica e tragédia, mais elegíaco e lírico do que narrativo: fala da profecia do Destino, com nota final sombria, e do lamento de Ariadne abandonada por Teseu.
LUCRÉCIO – Contraste com Catulo, não coleção de poemas e sim o único e maciço “Da natureza do mundo”, em 6 livros, filosofia materialista de EPICURO. Não grupo de amigos de gostos semelhantes, mas uma figura solitária, sem precedentes ou sucessores. Entretanto, difícil imaginá-lo numa alegre casa de amigos, ideal epicurista do prazer (proscrito um século antes – Cícero não gostava dessa “filosofia dogmática e superficial, negação de todo mistério, pouco política e inculta que ocupara toda a Itália), daí oportunidade para anexar a literatura grega ao império latino, aspecto didático épico, secundário em Lucrécio – outros haviam versejado sobre astronomia e agricultura. Volta-se para Empédocles (louco e suicida), grande poeta clássico do século V a. C., quando a poesia era meditação filosófica. Epicuro detestava a mitologia, esteio da poesia grega, desejava atrair os incultos e induzi-los à serenidade, mas a poesia excita emoções perturbadoras e dessa forma Epicuro seguiu PLATÃO ao banir HOMERO da sociedade ideal. Para Lucrécio, convertido ao epicurismo, a poesia era filosofia de prazer; Epicuro conhecido por sua piedade, seguia a religião de Atenas e as alegrias dos festivais, porém Lucrécio, não era exatamente ateu, mas dizia que toda religião é erro enganoso e mera superstição – deus “era” só Epicuro. Incoerências, profundidade e mistério no poema: o livro I inicia-se com a invocação de Vênus, mãe de Eneias e dos romanos, natureza criadora, trajada em forma mítica; no livro II, ele prova a imortalidade da alma e irrompe o triunfo sobre a morte; o livro IV discute sexo, num ponto de vista melancólico que considera “loucura e dor incerta” – Vênus, amor sexual, é visto, às vezes, como dos homens enfraquecidos e em outras é preparação para a vida social; o livro VI abre-se com elogio a Atenas, inventora das colheitas e do Direito, mãe de Epicuro. Na verdade, Lucrécio era o não-Epicuro, porque mais autêntico para a vida, tendo dela um senso mais trágico.
VERGÍLIO, adulto entre 16/17 anos, mortos Catulo e Lucrécio, quando chegou a Roma com as mesmas ambições... filho de um rico dono de terras e aspirava carreira senatorial para o filho. O rapaz era mais versado em literatura grega que Catulo, e lia filosofia e história em grego e latim. Viajou para Roma a fim de estudar retórica e tornou-se membro do círculo de Catulo – uma aparição nos tribunais o decepcionou, estourou a guerra civil em 49 a. C. e retirou-se para Nápoles, onde abraçaria o epicurismo; quatro anos mais tarde, um amigo sugeriu que tentasse algo mais ambicioso e novo para Roma – um romano já escrevera pastorais gregas e ele leu uma cena pastoral que termina num sombrio contraste com a luxúria da época. Tinha 25 anos ao seu primeiro poema circunstancial, “Elegia II”, onde revela estilo e personalidade, o personagem Corydon apresentado com a maior simpatia do poeta, campo contra cidade – gregos mais urbanos, romanos mais vivendo no campo – Corydon chama-se na terceira pessoa, em monólogo dramático, e reconhece erro deixando o trabalho no campo – há um toque de alegria na égloga em que o poeta pastoral corteja o favor de Roma. Na “Eneida”, a morte de Dido mostra um tema trágico e épico, Vergílio por dentro de seus heróis, diverso da objetividade da narrativa homérica; inclui o tema favorito que é a competição entre poetas-pastores, mais rápida em parelhas que em quartetos, cena de farsa em que pastores discutem, pura pantomima. Esquetes dramáticos no palco, a multidão aplaude de pé; Cícero o chamaria de “magnae spes altera Roma” (a segunda grande esperança de Roma), reservando para si próprio o primeiro lugar. A “Égloga V” celebra a morte e atribui-se à deificação de Júlio César, mas na realidade o poema se refere a algo mais poético, a idéia da “simpatia” da natureza e do poder encantatório da música e da poesia sobre montanhas-árvores-animais, ou seja, o mito de Orfeu. Obra do gênero pastoral foi para... o brejo: em “Geórgicas II”, versejou sobre confisco e desapropriação de terras, entregues com equipamentos e escravos, efetuado por Antônio e Otaviano, que “viraram a Itália inteira de cabeça para baixo”, em que nem a família do poeta foi poupada – ganhou de Augusto duas propriedades, mas nunca mais voltou para Mântua. Pela primeira vez, em “Égloga I”, aparece o nome de Roma na obra de Vergílio: um velho escravo que trabalhava a terra para lá se dirige, obtém a liberdade e a concessão de”peculium”, terra marginal onde trabalhara nas horas vagas. As “Églogas I e IX” protestam contra o assalto do Triúnviro às fundações rurais. Louvação à “estrela de César”, cometa que apareceu durante os jogos póstumos em julho de 44 a. C., porém mostrando esperanças transformadas em decepção. Evidência que depois da publicação das “Églogas” (37 a. C.) Vergílio foi feito cativo ou prisioneiro por Augusto, poema em peça única e sob seu verdadeiro nome. Em 40 a. C., guerra aberta entre Otaviano e Antônio, reconciliação selada pelo casamento de Antônio com Otávia, irmã de Otaviano, ocasião da famosa “Égloga IV” – havia um oráculo sibilino (em hexâmetros gregos, como sempre, que “profetizava” paz e uma nova era, Vergílio compartilhando a crença geral e alegria expressadas em cenário levemente pastoril, adaptação aberta do epitalâmio profético, cantado pelo Destino em “Peleu e Tétis”, de Catulo, ao mesmo tempo Homero renascido nele. Cedo desintegrou-se a paz, Vergílio ambicionaria escrever uma epopéia histórica sobre tema contemporâneo, porém na “Égloga VI” o próprio Apolo censura essa ambição e diz que se atenha ao gênero pastoral – o que se segue é muito mais ambicioso, uma cosmologia em miniatura. A “Égloga VIII” é um arremedo de epopéia, corpo do poema puramente pastoral, tema do amor trágico e destruidor Outro acontecimento externo impede Vergílio de prosseguir, um amigo abandonado por uma atriz – este não faz elegia e se volta para a carreira militar e política. Na “Égloga X”, Vergílio faz o elegíaco pastoral da Arcádia e lamenta a partida do amigo. Continua com as “Geórgicas” trazendo o tema do amor de Orfeu e Eurídice, e Dido para a “Eneida”. Em “Geórgicas II”, o épico filosófico e cosmogônico; em “Geórgicas III”, rejeição à fútil mitologia, entretanto o poema culmina no mito de Aristeu, contrapartida dentro de si mesmo. Para Vergílio, mitologia não era uma espécie de estória antiga, como para os gregos, e sim um simbolismo psicológico; ainda em “Geórgicas III”, a origem troiana dos Césares, mas curiosamente não a de Eneias, que foi, à primeira vista, um herói mercenário – quando este aparece na Itália, o presságio de sua chegada é um enxame de abelhas pousando numa árvore. A obra “Vida de Vergílio”, de DONATO, diz que foram onze anos (29/19 a. C.) para escrever “Eneida”, na realidade foi iniciada somente em 26 a. C. – quando Augusto se encontrava na Espanha, desde o ano anterior, ainda não havia nenhum esboço do poema. Mais 4 ou 5 anos após terminadas as “Geórgicas”, poeta hesitante, começando e parando, dizendo precisar de “estudos ainda mais profundos” – problema duplo: estender um minucioso ‘artesanato’ numa ‘tela’ de narrativa muito ampla e fazer um poema moderno, pessoal, na forma tradicional de Homero setecentos anos antes. Nas “Églogas”, o progresso e a unidade e continuidade de Vergílio são demonstradas. Houve influência de Vergílio, “a divina chama que iluminou mais de mil poetas”, em DANTE – quatro estágio para se compreender Vergílio: a tradicional; o alegórico; o imperial; e o mais profundo, o espiritual. Na “Divina Comédia” de Dante, Vergílio aparece como seu guia; posteriormente, a redescoberta da Arcádia pelos poetas do século XVI e pelos pintores do século XVII.
FONTES:
Um velho caderno universitário // “O mundo romano”, org. Balsdon – cap. XII: Três poetas romanos.
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