Realidades além do Horizonte
Outro dia eu estava no buzu, assim, pela tarde, voltando da faculdade, mais ou menos no horário de almoço, um pouco mais tarde. A fome apertando porque oras... não levo mais almoço e minha grana é pouca o que me impede de almoçar fora -- coisa normal, do dia-a-dia mesmo. Enquanto comia uma maçã e bebia agua para passar o tempo, olhei pela janela do buzu uma adolescente. Ela devia ter mais os menos os seus quatorze ou quinze aninhos. Estava com um boné, rabo de cavalo, camisa regata escura e bermudão, enquanto segurava uma bacia plástica para vender garrafas de água.
Cena também do dia-a-dia, algo corriqueiro. Então enquanto o buzu passava embaixo de um viaduto, enquanto o sol amenizava e fazia sombra, ela aproveitava o engarrafamento para vender agua para alguns que como eu, enganavam a fome de dentro do coletivo. Olhei para ela de cima, de dentro do ônibus, enquanto no asfalto ela vendia cada garrafa a dois reais, e cada copo a um real. Preço normal, algo realmente corriqueiro e que vemos todos os dias.
Olhando para aquela menina, lembrei de quando eu andava na quadra. Tempos bons eram aqueles. Eu tinha acabado de sair do ensino médio e não tinha nenhumazinha perspectiva de vida, do que fazer ou para aonde ir. Para piorar, estava enfrentando uma infecção terrível, que até hoje de vez em quando, ela vem para me assombrar e lembrar que preciso dormir todo dia. Naquela época, enquanto eu corria, de vez em quando aparecia um velho amigo meu da colegial. Ele já estava quase casando, já era pai e de vez em quando ficava abraçado a uma jovenzinha... uma menina de 16 anos que era a mãe da menina.
Eu digo quase por eufemismo -- não chegou a casar, o tempo passou e agora nem eu sei mais dele. Então, nos momentos que ele não a beijava e eu não corria, conversávamos. Certo dia, ele como bom estudante rosa-cruz, estava falando de Platão e Sócrates. E me espantei com o fato não dele saber de filosofia, mas de Sócrates saber e conversar com seus "gênios", seus "anjos-da-guarda", "espíritos protetores" ou o nome que sua tradição dê a eles. Fiquei tão espantado que passado uma semana fui eu mesmo ler a Apologia de Sócrates e a partir daquele instante, em vez de eu não saber o que fazer ou para aonde correr, pensava em fazer jornalismo ou estudar filosofia.
E enquanto eu olhava aquela menina vestida daquele jeito, toda suja mas vendendo água para ganhar uns trocados, aproveitando as sombras de um viaduto para poder vender sem suar um bucado, eu comecei a pensar do quanto as Realidades e visões de vida das pessoas diferem. Para aquela menina, aquele é o mundo e a completude da existência dela. Será que ela chegou a encontrar a alguém para falar de romances, filósofos e cientistas, e assim de repente, despertou um espírito indômito em seu coração, para que ela mudasse sua realidade?
Ou simplesmente ela persiste naquele caminho, talvez de forma diferente, talvez com filhos já, tomara que não morta. Apesar de positivista não sou positivo ao ponto de pensar sonhos e devaneios alegrinhos para ela, porque sei que realidades distintas turvam a vista e não nos permitem dar asas para voos maiores. É como se ficássemos presos a nossa própria visão de mundo. E dado a forma como ele gira, não conseguimos sair desse ciclo vicioso. Como se fosse uma ratoeira que nos impede de ver além do horizonte, justamente porque o horizonte é até aonde nossos olhos podem enxergar -- e eles enxergam pouco, um nada além do horizonte.
Então a menina correu. Foi para outro buzu esticar-se toda para vender mais garrafas de água para conseguir uma graninha, quem sabe para comprar algo para comer ou para enganar ainda mais os olhos, que mal veem este mundo. Desta realidade tremenda e sorrateira que nos pega, nos traga e não nos permite ver nada além do que nossas próprias vistas conseguem.