Aquele cheirinho

Entre os seis, juntávamos os parcos tostões e lá nos dirigíamos rumo à pastelaria Casteleiro. Íamos a pé ou à boleia no eléctrico, dependurados como podíamos na parte traseira, fazendo manobras de equilibrismo sempre que o “pica” nos tentava expulsar, tentando nos acertar com o alicate nas mãos.

As grandes montras recheadas com o melhor que havia em pastelaria, faziam babar os transeuntes, e nós não fugíamos á regra… bem, a bem dizer, nós os putos, acercávamo-nos das traseiras onde só com o cheiro de tais guloseimas eram o suficiente para deixar meia cidade diabética.

Eram grandes barrigadas de odor pasteleiro que mesmo sem querer nos entrava pelas narinas. Só depois de saciados de tal cheirinho é que recorríamos ao mestre Zé, na esperança de um pastel mais deformado ou uma bola de Berlim mais esturricada. Mas a sorte por vezes era madrasta e, quer o fluxo da “freguesia” quer o diacho dos novos fornos, os “estragos eram cada vez menores. Ainda recorríamos à madame Bettencourt, para os restos do dia anterior que não tinham sido consumidos, mas a madame tinha mais afilhados que pasteis que sobravam.

Quando o Zé entrava pela porta principal e o porteiro lhe franqueava a entrada, era muito mau sinal, ou era porque a zona já tinha sido batida pelos outros “afilhados” ou houvera uma varredura feita de encomenda por algum amigo que fazia anos. Mas quando se empertigava com a pose de um polícia e nos fazia um gesto com a mão para aguardar-mos, até o Amílcar Coxo, de contente, fazia um sapateado de fazer inveja aos dançarinos dos teatros.

Os anos passaram, mas o grupo sempre que se reunia e podia, dava um saltinho à baixa para matar saudades, comer umas sandes de presunto no solar dos Condes, “papar” uma matiné nos cinemas circundantes e no fim, umas imperiais no Ribadouro, mas antes, como se fizesse parte duma bênção uma aspiradela nas traseiras da pastelaria dava-nos alento para um dia de rambóia cinco estrelas.

Depois de casados cada qual seguiu o seu destino. O Rui tinha emigrado para o Canadá, Pedrosa, morreu numa mina em Africa, restavam o Serôdio, o Amílcar coxo, o Zé e eu. Embora só os quatro, fazia-mos o mesmo ritual de garotos de quando eramos seis, só que agora era uma vez por ano, devido a morarmos longe uns dos outros, cada qual na sua ponta do país.

Há coisa de três anos, combinamos mais um dos nossos encontros, desta vez, com a presença do nosso amigo “canadiano” que tinha vindo de férias. Partimos de Belém como quando eramos miúdos. Como senhores respeitáveis que somos, demovemos o amigo Rui de esperar por um eléctrico aberto para sentir o ventinho a bater-lhe na cara como antigamente.

Chegamos à baixa e depois de espiolhar-mos as montras dirigimo-nos para as traseiras para absorver o cheiro dos bolos. Entusiasmados com a presença do Rui inspirávamos aquele odor e discutíamos sobre qual era fornada que estava a sair, sem certezas, costumava-mos espreitar por uma grade que protegia a janela. Normalmente os pasteleiros não davam pela nossa presença, mas devido a obras, o acesso a esse ponto de observação tinha agora um pequeno muro que impedia que alguém de fora espreitasse lá para dentro.

Incentivados pelo estuporado “canadiano” saltamos o muro para confirmar o que teimosamente o Rui dizia serem pasteis de nata. O barulho estridente de um apito, acompanhado de uma ordem de mãos no ar. Deixou-nos sem pinga de sangue.

Na esquadra vimo-nos em papos de aranha para justificar a nossa presença para lá do muro. Valeu-nos o Comandante ser um meu conhecido, que depois de lhe ter contado tintim por tintim a nossa mania, deu o caso por encerrado, ainda assim, perdemos cerca de duas horas em explicações e na identificação. Todavia, o que mais doeu foi o sermão dado. Rematando no final para termos juízo pois já tínhamos idade para isso.

Não sei se a idade terá ou não a ver com isso de juízo, porém, acho que estamos mais comedidos nas nossas inocentes libertinagens. No entanto, de vez em quando, dou comigo a suspirar por uns palmiers, uma fatia de bolo-rei, daqueles que levavam fava e brinde e recheados de pinhões, ou um pastelinho de nata, que quanto a mim eram superiores aos pastéis de Belém ou ainda, uma bola de Berlim, frita em azeite puro, de azeitonas escolhidas à mão.

Mas como sonhar não me resolve o problema da gula, sempre que posso, convido os meus amigos para uma visita à pastelaria, mas nada de espreitar, ficamo-nos só por aquele cheirinho que nos transporta no tempo e nos faz sonhar.

Lorde
Enviado por Lorde em 14/09/2016
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