Dessas de honestidade e fim da vida.
Você vem à tona quando tudo vai mal.
Eu não consigo me lembrar dos momentos bons, sem antes chorar. De tristeza? Um pouco. Alívio? Talvez, honestamente. Frustração? Tanta, que me transborda. Angústia? Algumas doses, antes de cair no sono. A eterna culpa que preenche todos os cantos em que também esta a tua memória? Sim, é isso. Exatamente isso.
Você é minha lembrança mais culpada, dolorida e custosa. Você, agora, mora no mesmo buraco em que me afundo quando não suporto meu próprio eu. Toda vez que eu me aproximo do fim da linha, você está lá.
Você é minha noite em claro. É meu arrependimento e a prova da minha insuficiência. É minha falha consumada. É todas as vezes que eu sai para beber e você ficou em casa, sozinha e fingindo que estava bem para me incentivar a ir. Você é a minha escolha, que fica evidente quando eu recordo o quanto de mim foi embora com você. Tu levou meu esforço, minhas noites em claro, o pavor de aguentar os teus gemidos sombrios e incessantes madrugada a dentro. Levou minhas mãos cheias de creme ritmadas e incansáveis nos teus pés, ombros inchados e, até mesmo, no relevo anunciador que crescia em teu peito. Tem mais. Você era quem eu mais odiava e amava agradar e, mesmo assim, o fazia. Você era causa e consequência dos meus planejamentos.
Inclusive, você é o dinheiro que eu gastei, você é "não fazer mais que a minha obrigação" e "minha quase filha que eu amo". Para sempre você vai cheirar parecido com torta de limão quentinha, feita por mãos sem unha e cabeça careca.
Você me destrói em cada hospital que sou obrigada a entrar e em cada chocolate amargo 70% cacau que eu coma. Você impregna o mercado municipal inteirinho.
Aliás, tu foi a pessoa mais corajosa e mais covarde que a humanidade pode conviver. Tentou ser a dona de casa perfeita, o estereótipo, o status,a mãe ideal para seus filhos. Negou sua história oculta, animalesca e livre. Sinto saudades imensas dos teus cabelos vermelhos gigantescos e de como você dirigia absurdamente bem.
Agora a labuta de toda a tua vida torta será distribuída entre egoístas e falsários, que sequer sabem que você dormia sentada por não conseguir respirar ou que sentiram a água escorrer entre os dedos, tendo como fonte sua cicatriz aberta.
Você era avidez e esperteza. Era uma insistente aprendiz que nunca obteve sucesso. Você é a crueldade do acaso ou o efeito do Karma. Era como uma filha décadas mais velha que eu perdi, que me largou, sem querer se despedir.
O mais viciante e assustador é que você é e será uma eterna vírgula, um parágrafo pela metade, uma pendência que transcende.
Sabe, eu ainda costumo secar as gotas do vidro que isola o chuveiro de vez em quando.
Acho que o meu coração ainda não encontrou segurança para poder olhar para tua foto preta e branca no concreto. Logo eu, que sempre gostei de noir.
Talvez você tenha levado boa parte do que eu chamo de fé e o meu amor testado e exausto.
Se eu pudesse fazer um pedido hoje, seria o nosso ponto final. Acho que merecíamos, eu e você,nós duas. Mas, tudo o que resta nessa nada romântica estadia mundana é o eco de uma voz embargada, todo dia 13, me dizendo "Ela foi...".
Hoje você completa um mês de despedida.