Abandonada no concreto
Você não se pergunta porque está sozinha no meio de todo esse concreto? Porque te deixaram aqui? Será que foi para morrer? Ou para aqui viver? Te vejo tão linda contrastando com todo esse cinza. Seu lugar não é aqui. Você não merece. Merece estar no seu lugar de verdade. Porque te trouxeram para crescer e viver aqui? Porque te desenterraram da sua mãe e te plantaram nessa terra, nesse ar poluído, nesse chão artificial? Sei que preferia ter ficado com sua mãe, não é mesmo? Aqui o céu não é sempre azul. É cinza. O ar não é sempre puro. Você respira fumaça. Centenas de pessoas passam ao lado de suas folhas todos os dias. Arrogantes, com conversas chatas, sobre trabalho, problemas com professores na faculdade, no colégio. Desentendimentos familiares. Com amigos. Muito diferente de onde você veio. Lá, os pássaros vinham conversar sobre amor. Sobre voadas. Sobre viagens. Sobre pousadas. Vislumbravam miragens. Faziam moradas. E seu amor? Pede para os pássaros levarem o pólen de suas flores para bem longe... para a árvore mais próxima. Pede para o céu que não chova, pois sua água ácida já machucou demais suas delicadas folhas. Mas nesse mundo você não tem voz. Seus pedidos são como o silêncio. Sua voz só você ouve. Desde que você nasceu, até o dia em que morrer, não haverá uma outra árvore com que terá conversado. Não haverá uma só coisa natural com a qual tenha tido contato. Aqui é tudo artificial. Feito pelos homens e para os homens. Quem são eles para achar que suas construções são melhores que o que Deus construiu para você? Mas eles te tiraram do paraíso para perecer aqui. Por qual motivo? A última coisa em que pensaram foi em você, isso é certeza. Não precisa de motivo para fazer aos outros o que eles bem entendem. Acham que trazendo uma árvore como você para um mundo de concreto como esse, a qualidade de vida deles melhora. Então porque não transformam aqui em paraíso? Aí, então, aqui seria sua casa. Árvore frágil, você não pode se mover, não pode suplicar e nem reclamar. Não pode morrer, não agora. Não pode sair desse lugar, uma vez que aqui foi plantada e aqui ficará até o fim de seus dias de contagem misteriosa. Aqui sempre há a mesma probabilidade de raios te acertarem, de carros colidirem com você. Não há como ir para lugar mais perigoso, não há como abreviar sua estadia aqui. Portanto, aceite sua pena e viva. Viva da forma como eles querem que você viva. Se apenas mais uma árvore que sobrevive ao concreto. Enquanto eles te contemplam, com sorriso nos lábios, ou te ignoram, em suas vidas corridas, não imaginam sua solidão e abandono. Mas você não deveria ficar feliz por proporcionar felicidade a eles? Mas o que você recebe em troca? Está sempre só, sem amor. Porque a rega do amor nunca te molhou. Porque você não cresce com amor, mas impelida pelo concreto que te impulsiona debaixo das suas raízes. Elas procuram nutrientes e encontram um solo pobre. E não podem encontrar solo mais pobre nem mais rico essencial para seu bem-viver. A providência dos céus não atravessa o concreto que cobre o solo. Por isso a providência dos vivos não serve para mortos. Aliás: nunca se morre para quem se ama. Por isso não há mortos. Há vivos que sobreviveram à vida. E há árvores abandonadas no concreto.