Consciência
Uma consciência solta no vento da noite. Não um corpo, não uma alma... apenas uma consciência. Consciente de que também tem rosto, mas olhos que não conhece. E cabelos. E boca, que não fala. Grita. Pelos olhos. Passeando, vagando, voando, na altura da rua, pela cidade na velocidade de um carro a sessenta por hora. Alucinando, aumentando cada segundo mais um pouquinho. Sessenta e cinco. Setenta. Cento e vinte. Centro e cinquenta por hora. Um milímetro por segundo. Um corpo por dia que morre. Uma consciência por corpo que se liberta. Como se correndo estivesse, mas sem pernas para movimentar. Sem olhos para ver, pois via com sua consciência. A visão era exercida por tudo aquilo chamado ‘corpo’. A luz das lâmpadas incandescentes iluminava as árvores e se tornava impossível identificar as cores das pequenas flores. O alaranjado das luzes se confundia com o sangue no asfalto. A rua, molhada pela água da chuva, refletia coisas que não existiam. O ar, fresco, refrescante, parecia me dizer para relaxar, para respirar. Mas eu não respiro. Fui passando em alta velocidade para sentir o vento. Me falaram de pessoas que morreram nas estradas e seus espíritos ficavam por lá, vagando. Me falaram de pessoas que morreram afogadas. Que morreram atropeladas. Que morreram de ataque cardíaco. De pessoas que nunca viveram. De pessoas que foram abortadas. Seus espíritos gritavam de forma ensurdecedora. Mas os agressores não as ouviam. Mas suas mãos andavam cheias de sangue e sua consciência também. Já, eu, sou uma consciência sem dono. Aliás, não sei se sou independente ou se não me lembro a quem pertenci. Se fui alguém. Carro. Vidros fechados. Volante. Velocidade. Janela gelada. Úmida por fora. Sinto que se abri-la sentirei a brisa fresca da noite entrando na madrugada. Junto com o odor de algo. Vejo algo estranho. Vejo alguém na rua. Alguém estranho. O carro se aproxima. Algo se desprendeu de mim. Eu me desprendi de algo. Me libertei? Eu estava presa? Agora não vejo mais nada. Estou correndo, correndo, correndo. Alucinada. Não sei quando comecei a correr. Não sei se vou parar um dia. Já não tenho corpo. Já não tenho a lembrança de ter um corpo. Não sei o que é um corpo. Não tenho noção do que é corpo. Sou completa assim. Não tenho acessórios, não tenho sentidos. Sou um tudo: sou completo. Não sou ela. Não sou nada. Não sei se já vivi ou se apenas vivi aquilo de que me lembro. Talvez tenha vivido uma noite apenas, em toda a existência das outras pessoas. Eu sempre tive em mente tudo o que me contaram sobre a morte. Sobre a morte dos outros. Porque a minha morte... foi diferente. Minha morte é meu estado. A consciência é meu ser. A noite é meu tempo. A rua é meu chão. E a vida foi uma noite. Tão breve... tão angustiante. Sempre com medo desse fim que eu teria. Que, agora que assim estou, estou acomodada. Que sofrimento há? Ninguém que eu me lembre conhecer. Ninguém que eu me lembre amar. Não sei se alguém mais habita esse mundo. Se vivos andam por aqui e se faz dia. Me parece que estou só. Só comigo mesma. Com outras consciências sujas de sangue. O último suspiro da consciência é também o primeiro, pois se a terra é minha prisão, nada há para marcar o meu tempo. Minha pena é perpétua.