A faxina

 A propaganda me atraiu. Não só isso, mas o resultado que eu via periodicamente nas outras casas era arrebatador. Irresistível. Eu precisava dessa faxina aqui. Na verdade, eu nem sabia disso até esse faxineiro me mostrar – pelo seu trabalho nas outras casas – o quão todos nós, residências aparentemente limpas e plenas, somos obscuros, encardidos e imundos. E hoje eu vejo: quão cega eu andei! Essas mudanças constantes de moradores, vai e vem de móveis estavam mesmo me deixando solitária e suja, encardida. Precisava disso. O que eu sempre observei tão de perto, mas que me parecia tão distante..

 Lembrei-me de um livro que o último morador deixara aqui. Minha vizinha sempre o lia e uma vez ouvi que era o Manual do Faxineiro. Pensei que talvez fosse mesmo, porque apesar das constantes mudanças que lá aconteciam, ela sempre estava feliz, e mais limpa, contente, como se nada lhe faltasse. E me veio à memória que todos falavam que o faxineiro mágico – como alguns da vizinhança o chamavam - passara por lá. Peguei o Manual e comecei a ler durante a noite, antes de adormecer. Eu precisava saber o preço dessa faxina e quantos aluguéis precisaria receber para recompensá-lo. Estava lendo calmamente quando, de repente, vi que essa faxina era de graça. Eu não precisava pagar nada!! Seria mesmo verdade? Corri para o quintal daquela vizinha e ela ainda estava acordada, e – coincidência ou providência – estava lendo o tal Manual. Conversamos e entendi que não havia um erro sequer naquele livro e que, de fato era gratuita! Voltei para casa e adormeci, na esperança de que um dia encontrasse esse faxineiro.

 Dias se passaram e o meu anseio só aumentava. Numa manhã aparentemente qualquer, o faxineiro tocou em minha porta. Abri com a maior dos prazeres, pois a minha sensação era como se ele já estivesse aqui, pisando o meu piso. Ele entrou, conversamos e ele me explicou o que eu precisava saber. Tudo fazia parte de um plano: há muito tempo atrás uma casa trouxe um lixo tóxico para a vizinhança que contaminou a todos nós, nos fazendo dependentes de nômades que parecem atrativos, e quando entram em nós destroem-nos e vão embora, como se nada tivesse acontecido. E o pior: as sujeiras que aqui existiam e eram oriundas do primeiro poluente não seriam limpas apesar de todo o nosso esforço! Então, o seu superior, o Grande o enviou como faxineiro para limpar as casas e levar-nos pra vila dele, uma vila sem sujeira, lixo, tristeza ou dor. Apesar disso, muitos não o deixavam entrar por estarem preocupados ou ocupados demais se divertindo com prazeres dos terríveis nômades. E ele também me informou: o fato de ele iniciar a faxina não significaria que eu deixaria de sofrer ou que os nômades deixariam de vir. A maior promessa dele era pra um porvir - o que transformou a minha vida aqui numa plenitude mediante uma esperança convicta - e durante a faxina eu iria sofrer muito, pois não seria só limpo, mas feito novo e cada cômodo meu seria reformado. Depois de isso entendido, ele passeou por aqui como se já conhecesse tudo e ao término disso, já me senti como se tivesse sido feita de novo nas mãos dele.

 Os anos se passavam, as tempestades vinham, nômades tentavam me destruir, mas eu cria plenamente na promessa que o faxineiro me fizera, lembrando que os dias aqui seriam difíceis, mas que faziam parte da faxina. Doeu, mas hoje vejo que houve uma reforma radical aqui. Cada cômodo foi feito novo, cada móvel remodelado e cada sujeira limpa. Até aquelas mais escuras e que estavam debaixo do sofá, que alguns diaristas que tinham vindo antes tentavam limpar não conseguiam, ele limpou. Foi de graça. E hoje, apenas espalho quem o faxineiro é e quem ele foi aqui, na esperança de que ele arrume outras casas também e na certeza de que ele ainda precisa limpar muita coisa por aqui. Eu espero que ele opere aí pra que você deixe-o entrar. E cuidado: alguns vão fingir-se dele. Mas quando ele pisar na sua calçada, você saberá. É diferente, é ele. É indescritível. Descobre vida quem experimenta. E vida em abundância.

Isabela Uchôa
Enviado por Isabela Uchôa em 10/09/2016
Reeditado em 15/09/2016
Código do texto: T5757070
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