Amor, eu sou golpista?

Ele abriu a porta do seu apartamento. Respirou fundo o ar de luxo e tranquilidade e principalmente apreciou o silêncio. Tudo ali dentro era reconfortantemente quieto, pacífico...

em perfeita ordem, como o mundo deveria ser...

Pelo tardar da hora, todos estavam dormindo. A esposa, o filho, as empregadas.

Mas não se importou. Aquilo até o tranquilizou. Seguiu para um dos quartos de hóspedes, tirou os sapatos, terno e gravata e se sentou na cama. Havia um pequeno bar no quarto. Se serviu de um uísque que deveria ter o triplo da idade de seu filho e saboreou lentamente aquele gosto. Mas algo estava errado. Tinha impressão que ultimamente tudo em sua vida estava fora de lugar, exceto em sua casa. Até o uísque não tinha o gosto que ele esperava que tivesse.

Sua esposa fazia o máximo para que ele se sentisse confortável, para que ele sentisse que estava tudo certo. Mas a ilusão não estava colando.

Deixou a bebida de lado e fechou os olhos. O que se seguiu foi um sono cheio de sonhos perturbadores, cheios de vozes acusatórias, que sempre repetiam a mesma frase. Acordou sentindo-se mais cansado do que antes.

Deixou o quarto e encontrou o filho brincando na frente da televisão. A esposa, sentada no sofá, com um vestido imaculadamente branco, lia uma revista com um sorriso no rosto.

A imagem lhe remetia a uma propaganda matinal de margarina. O sol entrava pela janela e fazia tudo brilhar, haviam flores em vasos e sorrisos nos rostos das pessoas. Mas as vozes que gritavam em seu sonho ainda se faziam ouvir em sua cabeça.

Sentiu-se abatido, mas estava decidido a não demonstrar isso a ninguém.

Seguiu para o banheiro de seu quarto, tomou um banho, escovou os dentes e retornou para a sala. Nesse meio tempo, sua esposa tinha organizado o café da manhã junto com as empregadas. Encarou a farta mesa, mas não sentia fome. Tinha um gosto metálico na boca.

Ainda assim sentou-se. A esposa e o filho o acompanharam em silêncio, e por um tempo ele sentiu novamente o ar de paz em tranquilidade. Seus olhos se perderam nos olhos da sua esposa enquanto ela servia-lhe um copo de suco de laranja. A juventude dela contrastava com o seu cansaço. A diferença de idade já não o constrangia, nem a ela.

Seus pensamentos foram interrompidos pela voz do filho.

- Pai, o que é um golpe?

Ele quase engasgou-se com o suco e tossiu convulsivamente por alguns instantes.

Sua esposa dirigiu um olhar repreensivo para a criança, que se calou.

Terminaram o café da manhã em silêncio e logo as empregadas desfizeram a mesa.

O filho foi brincar no quarto e lhe deixou apenas com a esposa na sala.

Colocando o rosto entre as mãos, sem conseguir disfarçar a angústia , perguntou a esposa.

- Amor, eu sou golpista?

Sua esposa o tomou nos braços e o consolou.

Para ela, as vozes não importavam. Não importava o que diziam os jornais internacionais. Le Monde (França), Der Spiegel (Alemanha), The Economist (Inglaterra), El País (Espanha), Público (Portugal), The Guardian (Inglaterra), Página 12 (Argentina). O que eles sabiam da situação do País? Ela sempre repetia...

Eles tinham a Veja, a Época, a Globo. Tinham o MBL, a maioria no congresso e no senado. Tinham a Fiesp, o Alexandre Frota, o Roger do Ultraje à Rigor, a Suzana Vieira, a Miriam Leitão, o Luciano Huck e a Angélica.

Ela se sentia segura com tudo isso. Mas por algum motivo as vozes não se calavam na sua cabeça. Tinha medo dos livros de história. Medo do mundo do lado de fora. Tudo tão barulhento, tudo tão fora de lugar.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 10/09/2016
Reeditado em 10/09/2016
Código do texto: T5756735
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