CRÔNICAS DE UM METRÔZÃO - SEM DEMAGOGIA

No dia da abertura da paralimpíadas, corria pra casa.

Errei o caminho do metrozão, aí veio na veia aquela raiva sorrateira, fim de tarde e cansaço rotineiro, fiz uma entrega e voltei ao Paraíso, não o cristão, o Paraíso linha verde que faz esquina com a linha azul. Chegando na plataforma - pra não variar - cheia, galera indo pra casa colocar o pé pro alto no sofá, tinha uma plataforma vazia, ops me engano, tinha um senhor meio estranho, então não tive duvidas: fui nessa plataforma mais vazia, obviamente, eu entraria no metrô com mais facilidade. O estranho é que logo reparei que a plataforma não estava vazia por acaso, era culpa do Senhorzão que lá se encontrava. Dei a primeira olhadela sem compromisso e olhos cheios de preconceito, não só olhos, mas nariz também, o Senhorzão estava com um cheiro muito mal agradável de dois metros de envergadura alar, haja preconceito. Puts, tem o preconceito do tímpano também: Ele balbuciava algo do tipo "eeeeeiii" como que chamando alguém que estivesse nas proximidades, mas os ouvidos de quem não quer ajudar, tipo eu, estão costumeiramente tapados pelos fones de ouvido, nesse meio tempo, ele já tinha gritado isso cerca de oito vezes, então eu em primeiro lugar - por estar mais perto - e os outros em redor, tapamos nossos olhos, narizes, ouvidos, e corações à um velho Senhorzão estranho. O tal Senhorzão era mais ou menos assim: Cabelo um pouco grande e descabeladamente branco, a barba idêntica ao cabelo, pele "morena" - nunca sei distinguir - trajes de mendigo, carregava uma espécie de cajado na mão direita, que se tratava de uma bengala improvisada de um cabo de vassoura, abaixo os tênis em seus pés eram um tanto descabidos, bem maiores, e por ser muito claudicante, deduzi ter alguma doença semelhante a trombose em estado avançado, ele era muito claudicante e por consequência curvado, quasímodo. Isso ,só de olhar, dilacerava algo em mim... e o mais estranho, ele não tinha olhos, por isso gritava daquele jeito com as poucas forças que tinha, literalmente sem olhos. Vi que o Senhorzão balançava e gritava, as pessoas olhavam e não faziam nada, então o Senhorzão sem saber por onde seus pés andavam foi os arrastando lentamente em direção ao fim da plataforma, aí pensei - desculpem - pensei: fudeu. Minha cabeça fazia questionamentos do gênero "não farei nada?", "vai deixar o cara morrer?". Olhei para os lados e vi que as pessoas estavam vendo exatamente a mesma coisa que eu, parece um vôlei de praia em que um joga pro outro a batata quente, vi que provavelmente elas se perguntavam o mesmo que eu "não vai fazer nada?", nesse momento meu coração já estava saindo pela boca, olhei para trás e vi a luz do metrô, ele estava próximo e o Senhorzão mais próximo da linha final...

Hoje aprendi nesses minutos, muito mais do que lendo Espinoza e a sua ética.

Hoje aprendi nesses minutos, muito mais do que lendo Maquiavel e a frieza do príncipe, hoje eu não podia ser afetado pela frieza.

Me atirei na frente do querido Senhorzão, dei uma empurradinha nele, nesse momento ele se agarrou no meu braço com uma força impressionante, como se eu fosse a única pessoa ali, e de fato era, apesar das outras milhares, e isso não importa, acho que ele nem notou o perigo que corria e apenas disse: Preciso ir pra Vila Mariana, então olhei pro lado e perguntei "por onde é?" o rapaz disse "é aqui", mas não era! As pessoas estavam tão atordoadas e paralisadas quanto eu! Perplexas ninguém conseguiu dizer onde era a merda do caminho, e eu já estara tão perplexo que não conseguia fazer nada... apenas caminhei com ele agarrado no meu braço e as pessoas ao lado iam nos olhando fixamente. Petrificado eu estava, e perdido, já passei por essas estações algumas centenas de vezes, e eu não sabia onde estava indo! Então o Senhorzão cego me guiou, ele disse "é aqui embaixo sim", tomei um ar rápido e pensei melhor, achei o caminho, então avisei ele "ah é aqui mesmo, vamos lá"...

No caminho, o simpático Senhorzão foi falando e agradecendo por ter ajudado, até porque, dizia ele, "deve ser meu cabelo, e não me ajudaram, deve ser minha barba, ou minha roupa, ainda bem que apareceu um jovem pra ajudar, esse país tem muito preconceito...". Eu nem soube oque dizer direito, só concordar. Eu nunca engoli umas palavras tão secas na minha vida. Engoli minha própria arrogância tão secamente, como areia no copo d'água. Deixei-o seguramente dentro do vagão, ele agradeceu carinhosamente, virei as costas e não consegui dar mais de cinco passos sem que meus olhos não clamassem lágrimas e no momento eu às detive, as mesmas que só derramo enquanto escrevia.