Minha amizade com o Bastião
Sábado chuvoso. Eu, presa no apartamento, tentando entender o porquê de tanta correria. A semana foi dura e desgastante. Aonde quero chegar com tudo isso? Aonde chegarei? Sem qualquer programa que me anime, está decidido: permanecerei em casa, deixando o pensamento voar pelas boas lembranças.
Tanto tempo longe da minha terra. Tantas viagens inúteis para debater assuntos com resultados já acertados, tantas horas perdidas analisando relatórios que, no mínimo, serão resumidos em uma lauda para entrega à Diretoria no final do mês. E esse turn-over que não baixa? E as mudanças que precisarão ser operadas para adequarem-se ao projeto que, neste momento, é o “boom” da vez?
Quero paz, sim! Quero muita paz! Preciso descansar!
Estico-me no sofá e retorno ao passado, ao tempo da minha infância e juventude, ladeada por diversos amigos, minha mãe na melhor das formas e uma vizinhança que mais parecia uma grande família.
Na nossa rua, a Pinheiro Machado, somávamos doze meninas com idade aproximada e amigas desde pequenas. Uma amizade que ainda, nestes tempos, rende bons frutos em termos de carinho, mesmo que estejamos, na grande maioria, separadas.
Na Pinheiro localizava-se a Delegacia de Polícia, na esquina com o Marechal Floriano Peixoto. Também era a nossa casa, tamanha afinidade que tínhamos com todos que lá trabalhavam. Lembro-me de todos ... vejo-os à minha frente neste instante, mas um era especial: o Bastião.
Soldado, baixinho, bigode raso e fisionomia de homem terno. Bastião era homem “do bem” vinte e quatro horas por dia. Casado com a Teresinha Mariani, tinha comigo vários laços. O primeiro a grande afinidade – chego a pensar que eu era a menina da rua que ele mais protegia. O segundo o amor pela minha vó. Sua esposa sempre foi muito chegada à casa da minha vó e, em qualquer festividade, juntava-se aos filhos como se uma fosse. A Teresinha costumava finalizar as suas tardes tomando chimarrão na casa da vó, sempre rodeada por carinhos. Tinha uma risada gostosa e um casaco vermelho que nunca esquecí. Acredito que o Bastião tenha se afeiçoado à nossa família em decorrência da esposa.
Os anos foram passando e eu comecei a sair à noite para algumas festinhas. Meu pai, sempre muito austero, enumerava as recomendações de tal forma que muitas vezes eu pensava em desistir.
Certo dia, sentada na sarjeta em frente à Delegacia, comentei com o Bastião e sugeri que ele falasse para o meu pai que a noite não era tão perigosa assim. Afinal, ele fazia plantões e conhecia a cidade como ninguém. Inteligente, o meu amigo decidiu agir de forma diferente: convenceu o meu pai que, quando estivesse de plantão, poderia me levar e buscar no local onde eu estivesse. Obviamente que o meu pai aprovou a ideia. Afinal, quem melhor do que o Bastião para zelar pela filha?
Lembro-me de uma noite com amigas na Borges de Medeiros quando, lá pelas 24hs, o Bastião chegou e fez um sinal com o dedo indicador no relógio de pulso. Eu, em vias de paquerar um menino, pedi que me aguardasse um pouco, morta de vergonha. Depois de uma breve ronda retornou o Bastião com seu olhar de “estou mandando”. Desisti da investida, dei a mão para ele e subí a Pinheiro Machado com meu amigo protetor, sem qualquer tristeza por ter interrompido a paquera. Nossos papos eram tão bons que valia a pena. Ele tinha a capacidade de adequar-se ao meu mundo, de falar a minha linguagem e, acima de tudo, de rir muito comigo, especialmente quando comentava sobre “os causos” que ouvia na rua.
O Bastião morreu cedo e eu, pelo carinho que tinha por ele, nunca mais falei o seu nome para a Teresinha. Continuava a encontrá-la na casa da vó, como se o passado não existisse.
Penso que era dor, a dor da perda de um homem que fez parte, de uma forma tão terna, dos melhores anos da minha vida.
Deve estar muito protegido, pois muito me protegeu.
Esteja em paz meu grande amigo!