Proibido para mulheres.
Era um daqueles dias tristes e cinzas, cenário perfeito para uma ficção científica: a chuva fina caía melancolicamente, como que denunciando um mundo desabitado, talvez roído por um vírus mortal. Ainda assim, apesar do triste, cinza e úmido fim de tarde, fui dar minha caminhada diária no parque perto de casa. Mas, chegando lá, nova ficção científica se apresenta: de todas as pessoas que também estavam no parque, nenhuma delas era mulher.
Talvez o mundo tivesse mesmo acabado e só tivessem restado os homens, que sem nada melhor para fazer passam o tempo correndo e caminhando e fazendo abdominais.
Afinal, para onde foram todas as mulheres que habitualmente, e até em maior número do que os homens, frequentam o parque nos dias de sol?
Resta a dúvida.
Talvez só homens, machos de verdade, sabe, é que têm a disposição de enfrentar aquela chuvinha fina insistente...
Talvez a neurociência ainda precise achar a última peripécia do cérebro feminino que faz com que as mulheres sejam “naturalmente” avessas aos dias cinzas e úmidos, assim como “naturalmente” gostam de rosa e de bonecas, né...
Ou, falando sério, talvez parques grandes, que em dias de chuva ficam semidesertos, e que têm parte de sua pista de caminhada tomada por um cerrado e escuro bosque, simplesmente não são um contexto lá muito convidativo às mulheres.
E isso não é ficção científica, e isso é muito mau.
Introspectivo que sou, adoro caminhadas à noite pelo bairro onde moro. Caminhadas solitárias para pensar na vida ou em nada. Quando morava em cidade grande, adorava sair de madrugada, tipo 4 da matina, cruzando ruas vazias até encontrar um desses lugares 24h e tomar um café. E confesso: em dias tristes e cinzas, o parque perto de casa me é razoavelmente convidativo justamente por ser um lugar quase vazio e abandonado.
O problema é que se eu fosse mulher tudo isso me seria bem menos acessível, e eu estaria presa numa engrenagem que me diz que algumas horas, lugares e situações não são seguras.
De um jeito perverso, mas muito naturalizado, nós, homens, temos uma gestão do perigo que é muito diferente da gestão feita pelas mulheres – diferente e mais conveniente.
Se estou só na rua e à noite, posso confiar que nada de fundamentalmente ruim vai acontecer comigo. Se muito, perco um celular, talvez a carteira. Se pá, levo um safanão dum assaltante mais nervosinho. Mas, via de regra, é só. Isso não me intimida, não a ponto de abandonar meu hábito de andar por aí sozinho quando e como quero – é só ‘não dar bandeira’, certo?
Com as mulheres o risco é outro, o que se ameaça perder é outra coisa, e o nível de confiança na sociedade e nas pessoas também é outro. E tão outro, que é preciso existir um movimento chamado ‘Vamos Juntas?’, sintoma da ansiedade, medo e desconforto que as mulheres precisam ter para andarem por aí sozinhas.
E isso transcende a insegurança pessoal e consolida-se no grande senso comum.
‘Que loucas seriam de caminhar a noite e sozinhas pelo bairro (lamento, sem caminhadas filosóficas para elas). Que doidas irem tomar café às 4 da matina andando sozinhas pelo centro da capital (lamento, sem cafés insones para elas). E que sem-noção irem caminhar num parque grande, esvaziado em dias de chuva, bem lá onde a pista é mais escura e afastada da civilização (lamento, sem atividades físicas ao ar livre em certos dias).’
E as estatísticas de violências e abusos tornam essas avaliações, de um modo ainda perverso, em algo justas. Afinal, alguns contextos são perigosos às mulheres simplesmente porque elas são mulheres.
O pior de tudo, como sempre, é a naturalização, e a gente periga nem sequer questionar por que para uma mulher é tão mais complicado fazer algumas coisas que para os homens são tão mais simples.
A consequência disso é enorme e tão dolorida que a sua integralidade escapa de mim e de minha condição de homem branco de classe média. Porém, casmurro que sou, tenho na ameaça a esse traço uma porta de entrada para a empatia: que frustrante seria me ser negado a tranquilidade de andar sozinho onde e quando quero, seja uma rua escura, uma madrugada ou um parque.
Mas, repito, aquele final de tarde estava para ficções científicas.
E lembrei de ‘A Máquina do Tempo’, obra clássica do gênero, lá de quando o guaraná era fechado com rolha. Nela, encontramos um mundo dividido entre duas raças humanoides, uma que vive na superfície e outra que vive no subterrâneo. Uma raça dominava a outra, o que obviamente estabelecia uma relação de medo, poder e desigualdade. Viviam quase em dois mundos opostos. E era quase como se a raça dominada não tivesse o direito de estar no mundo da raça dominante. E era loucura, doidera, total falta de noção que a raça dominada se aventurasse no mundo da raça dominante assim, sem cuidado nenhum, como se da raça dominante fosse...
Essas ficções científicas, não sei de onde tiram essas invencionices todas.