A “Menina” é um caso de amor meu que começou há mais ou menos dois anos atrás, quando eu tinha um sebo de livros usados no Centro de Convivência da USP. Quando ela se aproximou de mim pela primeira vez, percebi logo de cara, sem precisar examinar embaixo dela, que se tratava de uma cadela. Ela veio vindo devagar, olhando para todos os lados, e de repente deu de cara comigo e parou, encarando-me. Perguntei então a ela: - A senhora deseja alguma coisa? Ela não me respondeu, mas acho que gostou de meu atendimento e resolveu fazer-me companhia a partir daquele instante. Não saiu mais de perto de mim para nada. Claro que só para almoçar, e muito bem, no restaurante do Coseas. Mais precisamente na porta do restaurante do Coseas onde muitos alunos, professores e funcionários lembravam-se dela e lhe levavam copinhos plásticos com pedaços de frango, bife, e outras coisas que sabiam que ela apreciava. Terminando de almoçar, cheia até a tampa, voltava para seu posto ao lado de minha cadeira e dava-me o privilégio exclusivo de sentir seu estonteante cheiro de inimiga de banhos e da doença que tinha na pele. Doença que resultava em feias feridas em várias partes do corpo. Fedia tanto a coitadinha naquela época que para não magoá-la, dei-lhe um apelido em inglês que pegou: era a Shitgirl. Batizada pelos alunos de Flor, foi rebatizada por mim de Menina e atendia ao meu chamamento. Ciumenta, possessiva, latidora, chata mesmo com os outros, causou-me diversos prejuízos financeiros não admitindo a aproximação de meus clientes que mereciam sua antipatia. E o mais engraçado é que os mais antipáticos é que mereciam sua maior antipatia. Ela sabia selecionar, mas errava de vez em quando. Muitas vezes ela latia para alguém e a pessoa perguntava a ela: -Está me estranhando, Flor, minha querida? Esqueceu que te dei um bife hoje, no almoço? Ela de imediato recolhia o latido, enfiava-se envergonhada debaixo da mesa e só faltava voltar e pedir desculpas à pessoa: “Desculpe a manota; foi sem querer..” .
Havia, é claro, aqueles que a odiavam devido ao seu hábito de correr atrás de todo mundo como se fosse engolir a pessoa. Reconheço que dava mesmo susto em muita gente, mas nunca mordeu ninguém. Apenas incomodava como esses loucos mansos que andam pelas ruas xingando a quem nunca viram. Dava-me, portanto, o maior trabalho para explicar, às pressas, ao interessado, que ela não mordia. Só latia. Um dia uma moça muito feiosa gritou comigo exigindo que eu a prendesse. - Moça, ela não morde. Só late. E eu não vou prendê-la porquê ela não é minha.
Brava, grosseira mesmo, a mocinha quis dar uma de besta para o meu lado:
- E o senhor, morde?
- Não, minha filha. Bagulho eu não mordo de jeito nenhum. Pode passar.
A risadaria da turma a fez ir embora a cento e vinte por hora. E xingando. Um dia ela deu um latido curto atrás de uma bicha de mais de um metro e noventa e a franga doida voou por cima de minhas frágeis mesas lotadas de livros e fez o maior estrago. Foi a maior raiva que passei na USP, tendo que arrumar novamente centenas de livros. A bichona, depois de passado o “terrível susto”, ficou toda prestimosa, fingindo que queria ajudar, mas não se abaixando para pegar os livros:
- A melhor ajuda que você pode dar, seu merda, é sumir da minha frente.
"Ela" sumiu logo, toda tremelicando e ainda apavoradinha com o latido. Um sujeito que se dizia professor de literatura comentou comigo, na presença de várias pessoas, que já havia comprado veneno de rato para dar à Menina, como se esperasse receber a aprovação geral. Peguei-o pelo pulso e apertei com toda minha força até que ele se ajoelhasse e dei o aviso:
- Se essa cachorra aparecer morta, seu cretino, eu vou fazer isso no seu pescoço. E só paro quando te matar.
O cara, quase chorando de dor, foi embora ao som de diversos palavrões da turma. Todos amigos da insociável Menina, a Flor da USP, que tem seu próprio sofá em um dos blocos e seu fã clube na universidade.
Agora eu não trabalho mais lá, mas as portas de meu carro foram inteiramente riscadas por ela todos os dias, tanta era sua alegria ao me ver chegando. Eu descia do carro e ela me abraçava a cintura, deitava-se aos meus pés, dava corridas enormes, pulava com desespero para mostrar o quanto estava feliz ao ver chegar o velho amigo. As pessoas paravam e sorriam ante aquela cena de felicidade explícita e eu brincava com os conhecidos:
-Minha mulher faz a mesma coisa quando eu chego em casa.
Curada da doença na pele, graças aos carinhos e cuidados de uma senhora e de uma moça da farmácia da USP, de uma veterinária que fornecia os remédios, e os meus, que ajudava enganando-a e fazendo com que os tomasse, ela se curou da sarna, ficou bonita, está gorda, feliz, bem cuidada por seus muitos amigos, e, como sempre, desesperada de alegria quando me revê depois de longas ausências.
Muita gente me perguntou porquê eu não a trazia para minha casa, e fui acusado até de indiferente com relação a ela. Minha explicação sempre foi simples e irrefutável: ela é ciumentíssima, briguenta, forte, acostumada a sair no pau com a cachorrada, malandra e esperta feito ela só. Em casa minhas três cadelas são ciumentas, mal acostumadas, cada uma se achando mais dona de mim do que as outras. Eu correria o risco de uma carnificina em casa, ou, pior, ter que voltar a deixá-la na USP, o que doeria muito em mim e nela. Mas ela sabe que correspondo a seus sentimentos. E expressa muito bem os dela.
Havia, é claro, aqueles que a odiavam devido ao seu hábito de correr atrás de todo mundo como se fosse engolir a pessoa. Reconheço que dava mesmo susto em muita gente, mas nunca mordeu ninguém. Apenas incomodava como esses loucos mansos que andam pelas ruas xingando a quem nunca viram. Dava-me, portanto, o maior trabalho para explicar, às pressas, ao interessado, que ela não mordia. Só latia. Um dia uma moça muito feiosa gritou comigo exigindo que eu a prendesse. - Moça, ela não morde. Só late. E eu não vou prendê-la porquê ela não é minha.
Brava, grosseira mesmo, a mocinha quis dar uma de besta para o meu lado:
- E o senhor, morde?
- Não, minha filha. Bagulho eu não mordo de jeito nenhum. Pode passar.
A risadaria da turma a fez ir embora a cento e vinte por hora. E xingando. Um dia ela deu um latido curto atrás de uma bicha de mais de um metro e noventa e a franga doida voou por cima de minhas frágeis mesas lotadas de livros e fez o maior estrago. Foi a maior raiva que passei na USP, tendo que arrumar novamente centenas de livros. A bichona, depois de passado o “terrível susto”, ficou toda prestimosa, fingindo que queria ajudar, mas não se abaixando para pegar os livros:
- A melhor ajuda que você pode dar, seu merda, é sumir da minha frente.
"Ela" sumiu logo, toda tremelicando e ainda apavoradinha com o latido. Um sujeito que se dizia professor de literatura comentou comigo, na presença de várias pessoas, que já havia comprado veneno de rato para dar à Menina, como se esperasse receber a aprovação geral. Peguei-o pelo pulso e apertei com toda minha força até que ele se ajoelhasse e dei o aviso:
- Se essa cachorra aparecer morta, seu cretino, eu vou fazer isso no seu pescoço. E só paro quando te matar.
O cara, quase chorando de dor, foi embora ao som de diversos palavrões da turma. Todos amigos da insociável Menina, a Flor da USP, que tem seu próprio sofá em um dos blocos e seu fã clube na universidade.
Agora eu não trabalho mais lá, mas as portas de meu carro foram inteiramente riscadas por ela todos os dias, tanta era sua alegria ao me ver chegando. Eu descia do carro e ela me abraçava a cintura, deitava-se aos meus pés, dava corridas enormes, pulava com desespero para mostrar o quanto estava feliz ao ver chegar o velho amigo. As pessoas paravam e sorriam ante aquela cena de felicidade explícita e eu brincava com os conhecidos:
-Minha mulher faz a mesma coisa quando eu chego em casa.
Curada da doença na pele, graças aos carinhos e cuidados de uma senhora e de uma moça da farmácia da USP, de uma veterinária que fornecia os remédios, e os meus, que ajudava enganando-a e fazendo com que os tomasse, ela se curou da sarna, ficou bonita, está gorda, feliz, bem cuidada por seus muitos amigos, e, como sempre, desesperada de alegria quando me revê depois de longas ausências.
Muita gente me perguntou porquê eu não a trazia para minha casa, e fui acusado até de indiferente com relação a ela. Minha explicação sempre foi simples e irrefutável: ela é ciumentíssima, briguenta, forte, acostumada a sair no pau com a cachorrada, malandra e esperta feito ela só. Em casa minhas três cadelas são ciumentas, mal acostumadas, cada uma se achando mais dona de mim do que as outras. Eu correria o risco de uma carnificina em casa, ou, pior, ter que voltar a deixá-la na USP, o que doeria muito em mim e nela. Mas ela sabe que correspondo a seus sentimentos. E expressa muito bem os dela.