Coração de Ateu#
Conta a lenda que Maria Padilha tinha três filhos barbudos que pareciam mocinhas encalhadas embaixo da saia da mamãe.Não davam um passo sem sua ordem, controlando cada um como um verdadeiro Sargento do Exército.Nunca permitiu que trabalhassem e quem sustentava a casa era o seu afilhado Julinho.
Revoltado com tanta exploração era conhecido como a “ovelha negra” da família, principalmente quando dizia aos quatro ventos que era ateu.
- Não acredito em NADA! Nem na justiça, nem na política e muito menos em Deus.
Apesar de ser um rapaz esforçado e extremamente generoso, se dizia ateu, para a vergonha de Maria Padilha.
- Que pecado! - dizia ela, desesperada.
Para levar uma vida livre da tirania da mamãe, Pedro Batista, o primeiro filho, resolveu aderir ao fanatismo religioso.Ele usava o cabelo repartido ao meio, modelinho nazareno, jejuando diariamente, só de boca no gargalho do vinho...E quase morreu de cirrose.
Então Paulo José, o segundo filho, mudou de estilo; como sempre foi vaidoso e requintado, desfilava elegantemente com um terno de linho azul turquesa, abotoaduras douradas e sapatos de verniz.Fazia muito sucesso graças à imobiliária Jardim do Éden, onde vendia a preço de banana terreninhos no Paraíso, com antena parabólica para captar o culto dominical gravado ao Vivo da suíte do Criador .
Era tudo parcelado com a última prestação marcada para o Juízo Final.Ali seria dividido o irmão para direita, os irmãos para esquerda e os inquilinos do sub solo.Mas aquele que tivesse o carnê em dia poderia usufruir a tranqüilidade Eterna!
E João Ismael, que não era bobo nem nada, percebeu que falar com morto dava mais ibope e inaugurou o tele defunto, onde poderiam enviar, através do seu correio elegante, um telegrama mediúnico para os seus artistas preferidos da década de vinte.Poderiam enviar receitinhas de bolo para finada avó ou cartinhas de amor para Elvis Presley.
Cobrava apenas uma taxa simbólica, como uma casinha em Santos ou um fusca em bom estado, que serviria para manter um Office-boy espiritual da época da escravidão.
Cada qual levava a sua vidinha sonsa, até que um dia, no final da tarde, apareceu ali na vila uma família de imigrantes, fugidos da seca e da fome.Suas crianças pediam comida, água ou bolacha qualquer.
Pedro Batista, que era um beato muitíssimo ocupado, apertou o passo feito um tiro de espingarda, apenas para não perder a primeira missa do dia.Inventou que não passava de um pobre coitado, cheio de dívida e imposto atrasado.Disse ainda que “jejuar” fazia bem para o corpo e para a alma!
Paulo José pregava na pracinha ao lado e para disfarçar, saiu andando sem rumo, com um livro grudado no rosto.
João Ismael não podia dar um tempo, pois estava de prosa espiritual com Carmem Miranda, que naquele momento estava on line, no maior agito.
Sobrou apenas Julinho, que por ser ateu, não tinha nenhum compromisso importante com alguma entidade, seita ou religião.E mais que depressa não se fez de rogado; chamou toda aquela gente para o seu quintal e compreendendo na pele as injustiças da vida, serviu arroz com farinha, jabá no capricho e um carinho todo especial que só uma pessoa como Julinho tinha para oferecer, pois a sua verdadeira religião se resumia na caridade, na generosidade e no amor ao próximo, para que este próximo estivesse cada vez mais perto do seu coração!