PARA AMAR E TOLERAR, É SÓ COMEÇAR *
Desde que Seu Leléu ficou viúvo, carente e desiludido da vida, se desmanchou todo, achando mesmo que não valia a pena continuar a viver.Nada mais tinha sentido e o negócio era pendurar as chuteiras de prontidão, esperando a morte chegar e bum!
Continuava desolado com a barba sem fazer, dobrado num canto da cama com a peruca vermelha toda torta.Foi assim que Ivonete, sua filha mais nova, lhe encontrou numa tarde de domingo:
-Ô pai, que absurdo!
Pronto, não deu outra; arrumou todos os seus apetrechos numa mala velha e fez questão que Seu Leléu fosse morar com ela, o marido e os meninos num casarão pomposo bem longe dali.
Foi aquela ladainha, pois Seu Leléu dizia que não queria atrapalhar, ser um estorvo ou mudar a rotina da casa com suas manias de velho...O que Ivonete não sabia era que ele não estava de brincadeira quando falou sobre “suas manias de velho”!
Logo no primeiro dia já colocou as “manguinhas” de fora, fazendo uma Big careta ao ver toda a família grudada no chão da sala assistindo T.V. Passou em silêncio e foi direto para o seu Ninho da Solidão, o famoso Cárcere da Saudades, pendurando na parede retratos antigos da falecida. Embutiu os chinelos de couro debaixo da cama e empilhou os charutos na cabeceira, bem ao alcance dos dedos, só de medo que não pudesse alcançá-los na escuridão da madrugada.
Seu Leléu era uma figurinha carimbada. Pregou um cadeado gigante na porta,escrevendo num papel de carta todas as suas exigências para que conseguisse viver em PAZ:
-Na segunda deveriam servir a sopa de lentilha.Detalhe: na cama.
-Depois das dez queria silêncio absoluto, pois precisava meditar com seus botões (no maior ronco do mundo), é claro.
Ivonete até que entendia os chiliques do pai e tentou com muito custo segurar esta onda, mas com o passar dos dias o clima ferveu e ninguém aturava os desaforos de Seu Leléu, que já tinha diversos apelidos como o “O Fiscal”, “O Monstro da Peruca Vermelha”, “O Vigilante Rodoviário”...
Não teve outro jeito: o pessoal da casa começou a pegar pesado, exigindo que Ivonete tomasse uma atitude ou senão ficaria sozinha com aquela Mala sem Alça.
De um lado estava a galera toda e do outro o pobre do Seu Leléu, que com o passar do tempo, estava ficando mais cricri e exigente:
- Chega de blábláblá durante as refeições.Quietos!
- Nada de sapatos dentro de casa.Quero todos na soleira da porta.
- Que zumzumzum é este? Não estamos num circo e aqui não tem nenhum palhaço, compreenderam?
Então começou a Guerra do Século e Seu Leléu que nunca foi bobo nem nada, percebeu que a sua batata estava assando e com muito medo de ser jogado para fora, como um trapo velho, resolveu mudar de estratégia. Precisava reagir e bem rápido antes que fizessem sua mudança na calada da noite.
Até que uma coisa de louco aconteceu: Seu Leléu madrugou na cozinha, preparando um café da manhã no capricho, do tipo surpresa para os familiares queridos:
-O ovo morno era para o super genro.- sorria.
-O bacon para filha mais fofa do mundo.- cantarolava.
-A panqueca para as crianças maravilhosas!- dançava, enquanto servia.
Apanhou rapidamente a vassoura dando um trato especial na casa, no jardim e colocou o lixo na rua. Ninguém acreditou em tamanho milagre, enxergando naquele homem o desespero em pessoa.
Todos ficaram em silêncio, observando de camarote o seu desempenho.Não tinha mais idade para tamanho desaforo e não precisava ser assim. Sem dizer uma palavra foram todos ao seu encontro, lhe estendendo os braços e lhe proporcionando uma nova chance de participar da família, no dia a dia da casa, com muito carinho, diálogo e tolerância.
Então Seu Leléu colocou pra fora um choro de criança, forte, sentido e carente.Estava pronto a recomeçar, aprendendo com esses mistérios do relacionamento humano, que para viver bem e ser feliz, é preciso apenas um pouquinho de boa vontade.Porque amar e tolerar, é só começar !
Crônica classificada em quinto lugar no XXIII Concurso Internacional de Primavera- crônicas.
Silmara Torres Retti