O Beijo de Rodoviária

A primeira alusão natural dessa expressão cuidadosamente escolhida por mim remete ao conhecido pastel de rodoviária, que nada mais é do que o nada glamoroso salgado oriental frito , porem sem muita generosidade no recheio, e acredito que isso se deva ao fato de que viajantes vão e vem e o pastel (bem recheado ou não) jamais vai fidelizar a clientela passageira.

Ontem à noite fui na rodoviária de Satolep buscar meu filho que vinha de Camaquã, e como cheguei com bastante antecedência, sentei-me num banco empenado de concreto para esperar o onibus do filho e fiquei analisando os casais que ali estavam.

Percebi que a rodoviária é um local de encontro de sentimentos positivos...de muitas idas e vindas lotadas de paixão e saudade...tudo muito exagerado...a começar pelos meus próprios devaneios de observador curioso....

A viagem é a quase certeza de saudade...e a quase certeza de como é bom ser importante para alguém que nos vê partir ou chegar..

Ontem mesmo fui testemunha de alguns desses momentos ...

... o pai e o filho que esperavam caminhando de um lado para o outro a chegada da mãe ....a corrida e o abraço do menino....e o beijo do esposo....um beijo que emanava cumplicidade, paixão e resignação com a situação da ausência temporária...fiquei tentando imaginar o porque da mulher estar longe de casa..... e apesar dessa interrogação , não me restaram duvidas quando o abraço reconfortante do marido dizia sem palavras que nunca existiria uma distância tão grande entre estes corpos que apagasse os sinais do amor....

Entre a maioria das cenas que presenciei não vi beijos longos, ardentes, cinematográficos entre casais, vi beijos rápidos...urgentes como também pareciam algumas despedidas...possivelmente emoldurando o sentimento de uma pequena perda provocada pela distancia......

Entre cada caminho as pessoas não se despedem apenas de outras pessoas... se despedem de conflitos... dão tchau para alguns defeitos e bye bye para muitas incertezas.

Mágoas que talvez tenham sido tão latentes durante o final de semana, são abandonadas no Box 16....duvidas e angustias embarcaram no Box 17... vi que algumas decepções dirijiam-se para o embarque no Box 20....e assim, imaginei, uma a uma, todas as histórias vividas antes de cada despedida e de cada chegada...

Tudo na rodoviária parece mais intenso.

Desde a mão que alisa o vidro frio da janela do ônibus ao timido aceno ...o beijo soprado ao ar para que voe até a amada...e o desejo apertado contra o peito.... as malas carregadas de lembranças...e o abraço apertado que foi dado no último minuto, mas que valeu a viagem inteira.

A rodoviária é a lembrança da distância...como se ensaiássemos para a ausência provocada pela derradeira viagem (a verdadeira despedida que a morte representa) e como dolorosamente necessitamos desse entendimento... perceber o quanto é bom estar perto....estar junto de quem amamos.

Amores de idas e vindas, muitas vezes sentimentos passageiros, outras vezes, apenas amores... de longas estradas...

Percebi ali naquela noite alguns amores fúteis...vazios como "pastel de rodoviária"...e para esses casos reparei que o beijo de chegada e de despedida eram diferentes ...

... tinham aparentemente aquele gosto de óleo velho e rançoso de fritura...