“COMPREI UM DOTÔZINHO”

A frase é impactante e me valeu o seguinte pensamento “cronificado” que o dedico ao hercúleo personagem de Carapicuíba, protagonista duma reportagem televisiva ida ao ar hoje bem cedinho e que me trouxe ao meu presente texto.

Confesso que não me recordo o nome dele, sua imagem me tomou toda a memória visual, todavia, seu gesto é a repetição de vários personagens, de Joões, de Josés, de Marias, tantos, de todas as idades e de mesma história de dura vida de labuta, igualmente aos que vejo todos os dias.

Estão por todos os cantos, são heróis e são artistas das ruas, malabaristas dos sonhos da existência desafiadora dos sentidos.

A reportagem pedia uma socorro à cidade de Carapicuiba, uma cidade da grande São Paulo, de pouco mais de trezentos mil habitantes, e que, dentre a falta de tudo de prioritário, hoje não tem sequer uma sala de cinema.

O jovem personagem entrevistado, a quem chamarei de o “Hércules de Carapicuíba”, é mais um brasileiro jovem que engrossa a atual lista do desemprego, mas a sustentar a família de mullher e três filhos vendendo copos de água a um real pelo trânsito, e o mais criativo da história, montado num skate.

Sim, é um herói olímpico da vida.

Ali, faz parte do show da vida, o seu show desportivo (e perigoso!) de várias manobras de sobrevivência, o malabarismo que encena nos “gaps” possíveis do tráfego.

É um milagroso empreendedor pelo seu tempo que corre parado.

O que estrangula o nosso sentimento é ver o esforço da sua “auto-logística -empresarial” , a de comprar com parte do lucro e depois carregar o fardo de água todos os dias pelo tão difícil transporte urbano “ de casa ao trabalho e vice-versa “ para depois distribuir seu produto , já devidamente estocado na força dos braços e dos pés, aos clientes que passam como mágica, sedentos de tudo.

“Clientes-pessoas”, gente igual a gente, em qualquer canto do Brasil e do planeta dos atuais tempos.

Lembrei da minha amiga dona Maria que, a despeito dos seus setenta anos nos ossos frágeis, ainda faz faxina para ganhar a vida, igualmente do meu amigo, o seu José, que com oitenta compra seu sorvete a um real para vendê-lo a dois, todo feliz da vida porque lucra cem por cento no seu negócio!-dia desses, me contou que reduziu seu ganho em cinquenta centavos pois, em virtude da crise, a venda caiu- ele, todos os dias por ali, trajeto sagrado que agradece a Deus, a empurrar seu carrinho de sorvete, faça chuva ou faça sol,em meio às flores de plástico abandonadas no lixo que encobre a triste avenida dos Homens.

“tenho coração de ferro”- me diz ele socando o peito.

Sim , é verdade, sei que ele tem. É preciso ter.

Soube que o igual Hércules de Carapicuíba espera por um futuro melhor, afinal, mais ou menos trinta anos de vida, decerto que terá uma vida inteira pela frente, para lutar e ser merecedor de uma aposentadoria ao menos razoável, hoje muito longe de ser cinco mil reais, aquela, dia desses reclamada publicamente na tribuna dos políticos aos iguais homens que "cuidam" das gentes.

Na reportagem Hércules também reclamava do lixo que tem que driblar no caminho do seu skate, cujo depósito pelas ruas é maior que a capacidade da coleta urbana do seu município.

E o mais incrível: em plena época de eleições municipais.

Hoje em dia...até as enganações caíram no descaso...

Claro, ali, mais um retrato do atual do todo descaso de Brasil...nada novo.

Conto que Hércules espera pelo cinema à sua cidade.

Um pouco de lazer, de cultura, de alegria à ele e sua família, algo factível, ainda que fictício, para lhe acariciar o corpo cansado, a dar brilho aos olhos das suas crianças, a lhe restaurar as energias para essa dura estatística que cresce, a dos “ mágicos empresários de si mesmo”.

E senti que Hércules também espera por educação (uma melhor vida aos filhos), por saneamento básico, por segurança, por moradia, por trabalho, enfim, espera por respeito cidadão, por direitos sociais dos quais o seu atual déficit não é compatível com a dignidade da pessoa humana.

“Pessoa humana?”, hoje sempre temos que redundar no pleonasmo do óbvio, antes que alguma trapaça aconteça nos bastidores.

Perguntado pelo repórter se não sentia dores no corpo por tamanho esforço trabalhista, ele respondeu com a seguinte frase:

“Claro meu, mas comprei um dotôzinho!”...e completou:” eu não desisto, não!”.

Hércules é um sortudo: tem até um “dotôzinho” particular, disponível ali nas prateleiras da farmácia do bairro, que lhe custa barato, excelente custo/benefício para manter sua saúde apta e restaurada para o surreal da subsistência do dia seguinte, algo que lhe custa quiçá três copos de água potável, coisa valiosa e rara, a que mata todas as sedes dos seus clientes de sempre.

Antes que treminasse o meu texto alguém me avisou:"o dotôzinho custa oito copos de água do Hércules!".

Tempos de inflação impressioante mesmo.

Eu pergunto: "Como um simples "dotôzinho", pode custar tão caro?

Lembrei do direito à saúde e sua frase me reportou ao fato de que “anos a fio” eu a ouço diariamente na minha lida:

“ah, mas comprei e passei um dotôzinho”. E já sarei.

Uffa, ainda bem...passou e já sarou.

Então fui procurar saber o que é, afinal, esse 'dotôzinho" tão milagroso que salva todas as dores, todas as doenças, todas as faltas, todos os descasos, todas as desesperanças, todas as aflições.

Decerto que esse “dotôzinho” deva ser o “ super- mega –hiper- mais -médico”, produto de consumo que falta a todos, um hercúleo doutor que igualmente ao Hércules de Carapicuíba, cura “num passe de mágica” todas as dores do mundo... as suas e as do seu povo.

Reverências ao nosso grande "dotôzinho".

E a todos os milagreiros do mundo.

Hércules está certo e eu vou aviar a sua receita: está decidido,vou comprar um “dotôzinho” para mim também.

Aos demais, vou precrevê-lo assim:

Uso emergencial, por todas as vias da vida:

DOTÔZINHO:

Indicado para as tantas dores pessoais e coletivas, visíveis e invisíveis.

Tenha-o na cabeceira da luta e use quando necessário for.

Massageie bem até que a dor da fricção mascare todos os demais sintomas.

E saibam meus leitores, elas , as dores sintomáticas das tantas e diversas doenças incuráveis, as do corpo e da alma, são muitas...

Doenças cujas causas nunca nos são muito bem esclarecidas.

***Nota: em sincera homenagem ao Hércules da reportagem, o artista/desportista de Carapicuíba.