Cartagena e o mito da poesia
Visito a cidade de Cartagena das Índias desde 2013, para participar do Parlamento Internacional de Escritores e acompanhar, mais recentemente, também, o Parlamento Jovem. E durante essa minha passagem, de uma semana por ano, vou colecionando imagens mentais, guardando cheiros na memória, fazendo meu estudo de tudo o que vejo, revejo, experimento: sons, língua, comida, clima, arquitetura, transporte, segurança... nas malas das experiências, cada assunto e acontecimento vai se emaranhando, criando teias que se combinam o recombinam, sempre, me deixando atualizado e com vontade de manter os encontros, os desencontros. Afinal, a vida se tece assim, fio a fio, sem cronologia ou receituário.
Em 2016 voltei a Colômbia outra vez, com os olhos mais acostumados e os ouvidos um pouco mais apurados, tentando aprender mais e mais. E aprendi. O Parlamento Internacional e o Parlamento Jovem, de escritores da Colômbia e do mundo inteiro, é um lugar que transcende fronteiras, línguas, idades e gêneros literários ou artísticos. Além de quase uma centena de artistas da palavra, artistas plásticos, músicos e intérpretes, acorreram à Meca da Literatura, Cartagena, pessoas de sensibilidades diversas, cujas mentes, almas e corpos militam diuturnamente em prol das artes e dos direitos humanos, liberdade de expressão, paz, inclusão social, respeito à diversidade e contra todo e qualquer tipo de discriminação.
Nos dois encontros, tanto dos mais experientes quanto dos iniciantes, cada um e cada uma das pessoas têm chances de intercambiar, aprender, ensinar, ouvir, falar, propor, discordar, rever, realizar, aplaudir e receber aplausos. É um verdadeiro caldeirão cultural, em que se empenham instituições de memória, pesquisa, museus, rádios, universidades, escolas de ensino infantil e juvenil, empresários, governos locais, estaduais e nacional; bem como um público que também frequenta em busca da poesia, música e das manifestações culturais gratuitas que são oferecidos.
O circuito é extenso mas não falta fôlego para percorrer a Cidade Murada, também conhecido como Centro Antigo, para ouvir palestras e exposições, estudos literários e apresentações diversas no Colégio Mayor de Bolívar, Teatro Adolfo Mejía, Casa Museu Adolfo Nuñez, Restaurante Las Indias, Plaza de Trinidad, Parque Centenário e até no próprio Hotel Stil Cartagena, onde a trupe se hospeda, come, toma café, dorme, descansa e também participa de encontros culturais, rodas de imprensa e de conversa, saraus ao luar no fim da noite, trocas de cartões de visita, trocas de livros e por aí vai.
Nominar cada evento, descrever cada cenário e cada parlatório e/ou recital, realmente seria um prazer imenso, mas tomaria folhas e mais folhas, que nem assim daria a verdadeira dimensão e profundidade do que ocorre nos quatro dias do parlamento. São tantas emoções, lágrimas de alegria e de felicidade, apertos de mão, abraços; cada surpresa e cada aperto no peito quando lembramos que a hora de ir embora se aproxima. E eu, que me sinto um estrangeiro, porque, na verdade, sou, que não domino o idioma, e que estranho certos sabores e cheiros, vou me apaixonando cada vez mais e diminuindo a fronteira entre Bahia e Cartagena, entre o Brasil e a Colômbia. E dessa vez ouvi, antes de começar a apresentação e leitura de poemas do meu livro “Ruta 66: amores y dolores de un poeta”, de viva voz, do Presidente do Parlamento, que “Valdeck Almeida de Jesus é quase um filho nosso, do parlamento”. Aí, sim, me emocionei mais ainda e fiquei lisonjeado com toda a acolhida que sempre recebi, o respeito e o carinho que Joce Daniels e a equipe do parlamento tem me dispensado. Delfin Tejada fez uma entrevista comigo, ao vivo, para seu programa de rádio. Um dia depois, eu e Jorge Balesteros Montenegro e Fernando Chelle havíamos percorrido duas escolas de Cartagena, guiado por Gonzalo Alvarino, onde lemos poemas, falamos da nossa paixão pela literatura, como começamos e os caminhos que precisam ser seguidos por quem desejar escrever. Falamos de amor.
E amor e carinho o parlamento inteiro tem para com cada um dos visitantes. Tanto os mais conhecidos e famosos, quanto os iniciantes, recebem a mesma atenção e espaço para expor suas ideias, e ouvidos atentos prestam atenção às falas, exposições, leituras. Cartagena é assim, uma Cidade Poesia, que não precisa nem de sal, tempero, cheiros, nem de praia, nem de transporte, nem de arquitetura, nem de nada para existir, pois a maior riqueza e expressão da cidade é o espírito da poesia que circula por cada rua, praça, esquina... Ali, se respira e se inspira, a inspiração brota aos borbotões, a musa maior é a própria arte da palavra, que se mescla a tudo o mais e domina elegante e majestosa.
A pior parte de Cartagena é a partida... Na hora de ir embora o coração aperta, os olhos marejam, o corpo sua e a saudade aperta tudo, fazendo a gente se sentir, realmente, um estrangeiro, que não tem outra escolha senão voltar a sua terra, mesmo a contragosto. Mas creio que até com isso o tempo vai ser generoso comigo, pois pretendo voltar muitas vezes, viver e, quem sabe, morrer em Cartagena!
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