GAVETAS DO TEMPO
O tempo poderia ser como aquele armário que contém guardados para serem revisitados, toda vez que a memória acionasse os acontecimentos da nossa vida.
No meu teria muitas gavetinhas para serem arrumadas, vencida a alergia que me ataca toda vez que mexo em coisas com cheiro de guardado.
A gaveta mais trabalhosa seria a dos relacionamentos humanos e dentre estes os afetivos precisariam de um personal especializado em gavetinhas difíceis. A gaveta de filhos, amigos, amores.
Sem contar a da família, para a qual eu dedicaria um tempo especial. Cuidaria de dotá-la com a virtude da união, da disposição de tempo para aquelas grandes reuniões de família onde sempre tem algo que a gente não gosta. Mas depois de passado o tempo, a gente percebe o valor, a importância e a alegria dessas ocasiões.
Existem aquelas gavetas que a gente gostaria de deixar sempre abertas, escancaradas, visíveis e eternizadas. O nascimento de um filho, um diálogo, uma carta em dia de aniversário, uma viagem, uma reunião com amigos, um amor. Há instantes mágicos que às vezes valem uma vida inteira, pela sintonia com a energia que os envolve, ficam marcados e nos alimentam por inteiro. E essa marca duradoura nos acompanha nesta e na vida que há de vir, segundo a crença de cada um.
A gaveta da saudade. Quem não a tem? A do arrependimento, a do perdão, das reconciliações. A da saudade, eu gostaria que não existisse, eu a deixaria trancada, para que nela não entrassem as perdas, as ausências, os esquecimentos, a indiferença.
A das questões pendentes. Revisitá-las e ter o poder de desatar os nós cegos da nossa falta de sabedoria, daquela luz que não tivemos num momento crucial, de um sim ou de um não dito numa hora em que parecia ser a palavra exata, mas que depois ficou demonstrado estar eivado de enganos, de ilusão, de condicionamentos românticos e aprendizados dos quais nem suspeitávamos.
A gaveta da dor. Abrir uma fresta no tempo e ter o remédio para curar a falta de entendimento para a causa do nosso sofrimento. Atrasar ou adiantar o relógio e evitar as feridas que não cicatrizam. As tragédias. As vidas ceifadas. Para o inevitável, o bálsamo da aceitação.
A gaveta da felicidade. Guardar aí aquela colcha de retalhos formando mosaicos com as emoções inesquecíveis, causadas pelas coisas simples da vida e as que nenhum vivente pode deixar de experimentar. A de cada um é diferente. O ser humano tem a capacidade de se reinventar todo dia. Para uns é plantar uma árvore, ter um filho ou escrever um livro. A outros, escrever um poema. Existem aqueles que sabem deslumbrar-se com a vida, então é o bastante o verso de cada dia.
Voar pelo tempo como as borboletas voam na certeza do encontro da flor mais bela, espalhar o pólen, semear o bem, ter a certeza da boa colheita.
Indispensável uma gaveta vazia. É a das surpresas. Coração aberto para o novo, para o que há de vir. Aprender, renovar.
Se me fosse dado o poder de voltar, eu escolheria sentir de novo a plenitude da presença de minha mãe, viver aquelas tardes com ela descascando laranjas para nós, fazendo pão de queijo, doce de ambrosia, um tapetinho de fuxico que guardo até hoje. São eventos que só tem um significado – muito amor. É a gaveta dos desejos impossíveis, inspirados pela saudade e a constatação de que as águas do rio têm uma única direção e correm inexoravelmente para o mar.
O ser humano possui estas gavetas. Retém em si lembranças, datas e fatos de sua existência. Enquanto o tempo, este, é indiferente às convenções de calendário, às marcas que a vida vai deixando no nosso rosto, ele permanece impassível como testemunha muda da nossa experiência de existir. O tempo não passa, nós é que transmutamos nesse naco de eternidade.
20/07/2007
Crônicas - Pena que o Tempo não Volta (Forum do RL)
06hs30m
O poeta recantista Saji Pokeo dialogou com o texto, postando esta bela e sugestiva trova. Obrigada, poeta! É uma honra a sua presença.
Nas gavetas da vida gente,
Qe bom se o tempo parasse,
Que bom seria viver novamente,
Se um dia esse tempo voltasse!
Enviado por Saji Pokeo em 31/10/2009 13:10