A caneca

Eu tinha a caneca há pouco mais de um ano quando, por acidente, a minha tia quebrou ela enquanto lavava a louça, onde, por acaso, estava a minha caneca.

Ela foi um presente que eu encomendei, dois do mesmo, para o dia dos namorados do ano anterior. Foram confeccionadas duas canecas exatamente iguais, uma para mim, a outra para o meu namorado, com quem eu estava a cerca de dois meses de completar três anos de namoro.

A minha edição daquela caneca “limitada”, cuja arte eu passei algumas frações de hora carinhosamente montando semanas antes de mais um 12 de junho, agora estava quebrada, faltando alguns pedaços em alguns cantos, vazando qualquer líquido que fosse colocado dentro dela, longe de parecer com o que ela era quando eu tirei da caixa e do plástico bolha, mas ainda existia.

Não era pelos quarenta reais que ela havia custado, não era mais nem tanto pelo fato de que eu não podia fazer outra igual (até porque meu namorado gentilmente ofereceu a dele pra mim, mas eu recusei). Era, na verdade, porque ela era, à sua maneira e pra mim, única. O valor, a arte, ou o fato de que eu designei pra ser minha, junto ao que ela representava e o objetivo com o qual ela foi feita, tudo junto tornavam ela única.

E eu não sei se eu consigo explicar realmente, mas aquela caneca não existia mais como ela era pra existir e se eu apenas resolvesse fazer outra igual, não seria a ela. Nem a do meu namorado, que era exatamente uma cópia, mas tão única quanto, não seria aquela caneca. Eu me apego às coisas assim, eu sempre acho um motivo para me apegar.

Mas a raiva que eu senti da minha tia, agente do destino na quebra da caneca, passou e eu até achei que havia superado muito rápido o episódio, até que eu fui lavar a louça, outro conjunto delas, e dei de cara com a caneca me encarando, com sua grande cicatriz lascada entre os inúmeros desenhos de corações, pelo vidro do porta xícaras.

Eu esperava que não, mas aquela visão me incomodou profundamente até eu perceber o motivo, que caiu delicadamente, como louça, no chão, sem se estraçalhar para que eu pudesse apanhá-lo, encará-lo e entende-lo.

E foi com um misto de frustração e uma risada amarga que eu entendi a coincidência e a ironia de tudo aquilo: eu não poderia ter “descoberto” a caneca quebrada em outro dia, porque ela era uma metáfora do que o meu próprio relacionamento, pelo menos naquele dia – para ser justa, representava na minha cabeça parcial e no meu coração machucado.

Eu sentia ele quebrado, com alguns pedaços faltando, lascado em alguns lugares e deixando vazar coisas que deveriam estar seguras dentro dele, como a caneca. Mas, também como a caneca, ele ainda estava lá, ele ainda existia, embora não fosse mais o mesmo, cheio de marcas, lembranças e dias vividos.

Como a caneca, ainda, eu podia escolher se as marcas e lascas justificavam jogá-lo no lixo, guarda-lo pela lembrança ou seguir usando, apesar das limitações dos vazamentos, pelo que ele significa e representa pra mim, pelo que eu sinto em relação a ele. Soa um pouco cruel, mas eu poderia estar falando de qualquer um dos dois, salvo as devidas proporções que uma metáfora ao som de Avril Lavigne permita.

No final das contas, depois de pensar, eu nem saberia dizer se qualquer um dos pensamentos faria algum sentido e eu queria dividi-los com alguém. É claro que a primeira pessoa que eu pensaria seria meu namorado, mas eu não conseguiria falar disso com ele, não depois do dia que tivemos, não se ele fosse me mandar “desligar” a negatividade, colocar um sorriso no rosto e viver a vida. Eu tinha dias assim, mas não era sempre que colava, não dá pra desligar sentimentos e a tristeza não pode realmente ser considerada uma escolha.

Eu precisava conversar com alguém que entendesse isso, que por mais que eu quisesse viver a vida, algumas coisas precisam ser superadas e viver a vida faz parte de lidar com elas, não é sobre ser alegre e feliz o tempo inteiro. Quem dera!

Sabe aquela frase do filme/livro “A Culpa é Das Estrelas” que muita gente compartilhou até ela perder o valor? Bem, ela faz sentido, “a dor precisa ser sentida”. No original, em inglês, a palavra usada é “demands”, que significa “pede” ou “demanda”. É quase como dizer que a dor não apenas precisa, mas, na verdade, exige ser sentida. E ela não vai embora enquanto não for tratada com o respeito que merece, incluso no pacote o ato de senti-la.

Eu queria colocar aquele sorriso no rosto, levantar a cabeça e ir viver, como eu queria, mas eu não consigo lembrar da última vez em que foi tão simples. Nem lembro se deveria, se era o certo a se fazer. Ignorados os machucados, quanto tempo até um corte mal pontuado começar a sangrar? Ignorados os lascões, quanto tempo até a caneca quebrar de verdade? Será que, caso eu continue usando, ela vai durar o mesmo tempo que duraria se nada tivesse acontecido? Ou se eu continuar forçando sua louça enfraquecida com líquidos e bebidas, isso só vai fazê-la quebrar mais rápido?

Perguntas, perguntas. Metáforas entre meus dentes, com poder de me matar e eu sem saber se eu ainda tenho alguma escolha nisso. Sempre temos, dizem, mas às vezes queria ter alguém que pudesse, mais sabiamente, escolher por mim.