Assim ou ...nem tanto 62
Rompimento
Enfeito a tua nudez de silêncio e ajeito-me no morno de um espaço em que não te vejo. Sinto-te. Há muito que a tua pele está na minha, e que sofro em mim os teus desejos loucos. Também gosto de mandar o espírito descer a correr a serra e, sem ruído, gritar uma libertação selvagem, como se o corpo aqui parado vencesse o declive e o ar, se raspasse nos arbustos, se ferisse nas folhas afiadas. Percebo o sangue a perlar o peito, a misturar-se com o suor, a respiração ofegante da corrida, o descontrolo das pernas que já não consigo parar e, enfim, o choque bruto na violência fria da água da lagoa. Continuo por fora aqui parado, imóvel, com o sol a morder de leve as costas nuas e, contudo, sei-me gelado da água lá de baixo, espelho de um céu azul que, de profundo, é, também ele, de grande monotonia. Nem vento nem aves. A paisagem anima-se na vegetação mas posso pensá-la junto á água, incluir só este azul de nada e imaginar, decantada, uma paisagem interior á maneira de Rothko. Volto-me e tu continuas com os olhos perdidos, a pele dourada exposta, a boca prestes a sair do silêncio. Estendo a minha mão e toco-te. Percebo a contracção dos músculos, a pele arrepiada, a indiferença e sinto, cristalina, a água cair dos teus olhos, rolar em forma de rio, gotejar em lágrima e perder-se como se a recolhesse a saudade. Aposto que estou bem diferente no tempo antigo que choras ao recordar. Retiro a mão e aguardo que a voz me saia para dizer: - Vamos? A tua resposta, ainda doce de tom, foi gelada: - Vai tu. Eu fico.