Assim ou ...nem tanto 61
Assim ou …nem tanto 61
Com tudo.
O mundo comum não é de ninguém. Nasce da nossa porta para fora e nunca se desenha num só sentido. Tudo o que a seguir se vê é como se fosse nosso, da luz ao azul do céu sem mácula, do escuro do piso à cidade a descer até ao Rio, a subir até às arribas cobertas de branco. Tudo o que se vê, toca, percebe é um pouco nosso. Usa-se, sente-se, integra os nossos hábitos e pode mesmo ter o jeito que exigimos para ser ou para estar. A Rua é nossa mas também é dos que passam ou vivem nela. A Igreja, a Biblioteca, o Jardim, o Teatro são coisas nossas também. Mas, sendo de todos, não morreremos pela sua posse nem por posse não exclusiva queremos pagar impostos. O que é meu fica no interior das minhas paredes e de tudo me sinto senhor absoluto, tu à parte, cão, gato e canário fora desta partilha de egoísmos que serve para que, dali para dentro, me dispa de roupa, de códigos, de falsidades sempre que me dá na telha. Fico mais puro, mais eu, mais capaz de ser autêntico. Na rua tenho regras, sorrisos falsos, palavras amáveis a esconder desilusões, raivas e, tantas vezes, injustiças. Aqui estou livre do pior mas continuo atado a ti pelo afeto, obrigo-me a abraçar o cão sempre que lhe apetece festas e ao gato trato-o como um parceiro com quem divido tudo, até a tua atenção. Quanto ao canário levanto-me da mesa para lhe dar o que, insistente, me pede a piar. E pia por tudo o que me vê comer. Gosta de verde, de amarelo, de vermelho e que conste nunca antes vi canários pedir goiabada nem animais domésticos serem donos do dono. O mundo comum não é de ninguém, repetes. Na verdade, não é. Sinto-o como meu por ser mais fácil ser feliz com a quantidade de horizontes, na abundância de tudo, no exagero dos afectos. No mais, pelo avesso da conversa, sou só, pobre, sem propriedade privada. O que é meu pertence-vos e o que não é de ninguém é meu se penso em segurança.