PODE SER AMOR...
 
     Ela vinha de uma vida de amores incertos, encontros provavelmente sinceros, mas fugazes. Talvez a vida em uma cidade interiorana não a tenha feito desejar os sabores de uma existência mais plena. Também, a senectude e os seus efeitos disfuncionais roubavam-lhe os grandes anseios. O belo já não podia ser visto com tanta perfeição devido a opacificação do cristalino. A catarata roubava-lhe a silhueta dos objetos e com certeza a do seu grande amor. Vivia presa no seu prurido crônico que aquela urticária idiopática lhe impunha.
     A sua vinda para Salvador se deu em meio a uma grande tragédia. E o destino a obrigou a vir para a vida da cidade litorânea para curtir as marés e ressacas. Isto não estava previsto nos seus planos. Simplesmente aconteceu, imprevisível como a vida. O que viria acontecer mudaria o destino daquela alma feminina. Surpresa? Nem tanto. A vida é a assim. Onde está a explicação para o encanto?.
     Aquele surfista tinha o poder da juventude, mas não era belo. A pequena estatura e os cabelos encaracolados, soltos ao vento o tornava bem engraçado. O sorriso sempre aberto mostrava os seus dentes tortos e um certo retrognatismo. O andar cambaleante as vezes ajustado com um saltinho completavam o estereótipo daquele novo amor. Ela no seu momento geriátrico encarnava a volúpia e sedução de Gabriela de Jorge Amado e ele, mesmo com as limitações estéticas, tinha um espírito de nobreza como Dom Quixote de Cervantes. Impossível? Não. Desde o primeiro encontro nasceu o encantamento e a cumplicidade entre aquelas duas histórias.
     Nas manhãs chuvosas do outono eles se encontravam e se amavam. As limitações da visão dela eram suplantadas pelo olfato e pela audição. O encontro entre eles não era mais uma questão de ver. Agora, era de sentir e ouvir. O poder dos feromônios era maior e mais intenso do que a beleza do visual. Ela com todas as suas dificuldades, pois tinha “vida de cão”, amava, desejava e era correspondida.